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Os Shellac são uma das melhores e mais icónicas bandas do mundo. Sobreviventes do movimento pós-rock e imperadores do noise, andam há vinte anos na estrada e agitam os palcos como na década de 90. Anualmente, regressam a Portugal para o NOS Primavera Sound no Porto, banda residente do festival que confere ainda mais familiaridade ao evento: são aqueles primos que revemos sempre nas ocasiões mais especiais.
Steve Albini é o rosto mais visível do trio, engenheiro e produtor de alguns dos melhores álbuns de rock, que só não elenco por preguiça e por não fazer um serviço tão bom quanto a Wikipedia. Na edição de 2015 do NOS Primavera Sound, encontrei-me com ele. Foi algo muito interessante, que começou com uma casual troca de e-mails e de números de telemóvel, e daí à troca de SMS com Albini foi um salto: ainda estava em Barcelona à espera de voo, mas assim que chegasse ao hotel ligava-me. E assim foi.
À chegada ao luxuoso hotel de 5 estrelas portuense, ver Steve Albini, aquele ícone descer no elevador envidraçado foi uma experiência quase-religiosa. Melhor sensação, só a de sentar num sofá aveludado mais caro que a minha renda anual. Começámos por conversar sobre a vida de Shellac na estrada, ao fim de duas décadas, a logísticas de voos, os sonos repartidos, as escalas em aeroportos.
Bem, é basicamente igual ao que sempre foi. Enquanto banda existimos há muito tempo, tocamos há mais de vinte anos, e no início éramos apenas nós os três e o técnico de som, e íamos para a estrada. Hoje em dia, é igual: nós os três e o técnico de som, e vamos para a estrada. Quando fazemos viagens internacionais, é um pouco mais complicado e moroso, porque já tens a rotina de sair em tournée de carrinha – acordas, carregas o material, segues viagem até ao próximo concerto, fazes esse concerto, carregas a carrinha, viajas para o lugar seguinte; e quando viajas de avião, há toda uma logística necessária: tens de marcar o transporte, assegurar que o táxi chega a horas, e quando chegas ao local de concerto há que verificar o equipamento que, por vezes, está incorrecto. Viajar de avião não é tão fácil quanto viajar de carrinha. Nesta fase da nossa tournée estamos a voar para todo o lado. Saímos de Barcelona para Istambul, de Istambul para Thessaloniki, e depois para Atenas, e daí para cá. E daqui voltamos a casa. E aí voltarei a ser uma pessoa normal.
Apesar da jovialidade em palco, Albini é já um respeitável senhor de 53 anos, com uma família à espera em casa e responsabilidades no negócio, o seu estúdio Electrical Audio, no qual já se gravaram centenas de discos desde 1997. Tive de perguntar ao engenheiro de som que mais admiro se a motivação para tocar ainda é a mesma de sempre.
Quando és novo e inexperiente, apenas o facto de tocar é algo revigorante por si. Só estares em palco a tocar a tua guitarra é algo excitante e razão mais que suficiente para o continuar a fazer. E, felizmente, na minha banda eu ainda sinto que apenas tocar é recompensa suficiente. A razão pela qual ainda o fazemos acaba por ser a mesma, embora já não seja uma novidade.
Quando és novo e inexperiente, cada nova situação é uma experiência, do género «olha, uma nova moeda» e dois dias mais tarde ainda tens essa moeda mas já não podes comprar mais nada com ela, então isso sim é uma experiência excitante. Ou então ter que decifrar algo num outro idioma, também era algo excitante por ser novidade. Mas agora, quanto mais viajamos, estas coisas acabam por ser tornar triviais. Já o tempo que passamos em palco, em concerto, esse entusiasmo permanece igual desde o início.
Para além de os ter visto no NOS Primavera Sound, tive a oportunidade de ver Shellac em Serralves em pleno ano de 2010. A minha parte favorita dos concertos – confesso – é o clássico espaço para Q&A do público. Curiosamente, no concerto de 2015 no Primavera (já depois desta entrevista) este momento não integrou a setlist da noite. Ainda assim, tive de saber quais as perguntas mais memoráveis que lhes colocaram.
Num concerto em Los Angeles, alguém perguntou qual a melhor forma de cozer uma batata. E eu tinha acabado de aprender, então tinha uma excelente resposta sobre como cozer batatas, depois de ter andado a experimentar diferentes maneiras de o fazer. Jamais esperei uma pergunta daquelas, mas acabou por ser entusiasmante poder partilhar algo em que tinha andado a trabalhar recentemente.
Também houve um concerto na Irlanda, numa pequena vila, em que ninguém sabia quem nós éramos, a malta que foi lá ao bar não fazia a menor ideia de quem éramos ou que estaríamos lá a tocar. Não eram fãs que tinham ido ao bar da terra ver-nos. E uma das miúdas que lá estava, teria os seus 15 ou 16 anos, quis saber se tínhamos cassetes com a nossa música. E o Bob [Weston] disse que não, não tínhamos cassetes da banda, e a miúda respondeu «Mas deviam!». [risos] E não sei porquê mas a partir daquela altura começámos a achar que talvez devêssemos levar cassetes para os concertos, ela parecia dominar o assunto. Mas não, ainda não temos cassetes.
Foi uma conversa bastante descontraída e muito bem disposta. Steve Albini é conhecido pelo seu espírito crítico e isso é algo que lhe admiro. Na década de 90 foi amplamente elogiado pela coragem com que enfrentou e denunciou a influência das editoras na produção musical, procurando sempre manter a sua autonomia.
Quando eu escrevi esse artigo há 20, 25 anos, descrevi a realidade da época em que as editoras tentavam contratar a toda a força as bandas mais underground, pois viam ali um mercado a explorar. Não era do melhor interesse das bandas filiarem-se às grandes empresas, pois estas sabiam muito bem explorar as pessoas – tinham muita experiência, já o faziam há 50 anos. A banda não iria, muito provavelmente, sobreviver ao encontro, percebes?
A cena mudou muito e tornou-se evidente que as bandas que se mantêm fora desse sistema safam-se muito bem: essas bandas podem editar a sua própria música, tratar da sua própria publicidade e podem naturalmente definir a sua própria existência sem ter que ter autorização superior ou o apoio de uma editora. Isso, enquanto desenvolvimento cultural, é algo excelente e tornou-se algo perceptível para todos. Mas suponho que ainda hajam riscos institucionais e perigosos para o funcionamento saudável do ecossistema musical, factores que ainda são preocupantes – apenas aquele que referia no tal artigo, acabou por se resolver por si.
A conversa com Steve Albini foi inicialmente gravada em áudio, para emissão de rádio. Em 2015 fiz a cobertura do Primavera Sound em emissão para a Rádio Universitária do Minho, pelo que se tornou inevitável conversar com Albini sobre o papel da rádio para artistas e público num tempo em que a internet é o principal meio para descobrimos música nova.
A rádio tradicional ainda é muito útil por ser imediata, podes ouvir os acontecimentos ao vivo e em directo, no mesmo momento em que os eventos sucedem. E sabes que a informação não foi trabalhada nem moldada ao pormenor, de modo a corresponder aos critérios e à imagem de alguém ou algo do género. Por isso é algo genuíno e significativo, diferenciando-se de um formato como o podcast – apesar deste ser conceptualmente semelhante.
Evidentemente, os podcasts são uma forma de preservação e permite que aquelas pessoas que poderiam estar a fazer algo na rádio, com influência imediata mas que rapidamente se dissiparia, vejam o seu alcance expandido. Por exemplo, no Reino Unido as pessoas ligavam um alarme para não perderem os programas de John Peele – se ele hoje estivesse vivo, os seus podcasts teriam um público mais abrangente. Para além do interesse imediato, seria possível que a sua influência no mundo musical se prolongasse por gerações e gerações, em vez de apenas um limitado número de horas.
A internet é também um rico ecossistema de bloggers e críticos de publicações online como a Pitchfork, por exemplo. Questionei o Steve Albini como o via o papel que estes desempenham o seu papel na divulgação de nova música.
O aspecto mais positivo em relação ao blogging é o seu carácter democrático, pois qualquer um pode decidir ser blogger e sê-lo. Isso é muito bom, pois ninguém é impedido de contribuir para a construção cultural. Quem tiver algo de interessante a dizer, terá público e isso é positivo. Por oposição, o que acontece é que agora não há jornalismo profissional. E por “profissional” entenda-se jornalismo feito com determinados critérios como rigor e ética na reportagem. Actualmente, quase que não existe reportagem como acontecia na imprensa tradicional, em que o jornalista entrevistava diferentes pessoas, conversava com as fontes e testemunhava acontecimentos em primeira mão.
Agora, muito do que passa como jornalismo é pura reciclagem de informação do Twitter ou cenas que se apanham nas redes sociais. Obviamente, os publicistas aproveitam esta prática – já que ninguém vai verificar a veracidade das afirmações –, e na representação dos seus clientes, sejam artistas sejam editoras, podem dar-se aos maiores devaneios em press release, pois sabem que serão simplesmente reproduzidos. Podem escrever algo totalmente fabricado e apenas parcialmente verdade, pois sabem que ninguém vai verificar. Pelo menos até ao momento em que emergir uma controvérsia, porque aí toda a gente vai atrás dos factos!
A primeira abordagem do jornalismo dos dias de hoje é feita com muitos enganos e erros, mas o certo é que com o tempo as informações acabarão por ser corrigidas porque assim como qualquer um pode ser jornalista, qualquer pessoa pode ser um crítico do jornalismo. Então se encontras algo incorrecto ou mal explicado podes corrigir por tua iniciativa, fazendo parte de uma construção gradual de conhecimento – tal e qual como a Wikipedia por exemplo, que ao longo do tempo vai vendo a sua informação melhorada por especialistas.
No jornalismo há conteúdo que pode estar ligeiramente errado, seja por manipulação política seja por uma questão de imagem pública, mas com o passar do tempo essa fachada será questionada por quem tem interesse em aprofundar a informação. Por esse motivo, não creio que possamos considerar o blogging ao mesmo nível que o jornalismo.
Como importante membro da família Primavera Sound, atendendo à tradição do festival trazer de volta aos palcos bandas já extintas, perguntei-lhe se poderíamos alguma vez assistir a um concerto dos Big Black, influente banda pós-punk que Steve Albini fundou na década de 80.
Não, os Big Black enquanto banda deixaram de existir há muito tempo. Há questões muito práticas para uma reunião dos Big Black não ser uma ideia realista, mas mais que isso eu não sou uma pessoa nostálgica. Não gosto de acalentar essa ideia de que algo que aconteceu há uns anos é especial só porque é passado. Cada coisa tem o seu tempo.
Quando os Big Black estavam no activo reagiam e participavam no movimento cultural da época, da década de oitenta, e eu acho que a música que fazíamos e a nossa mentalidade podem parecer agora um pouco retrógradas. Aquando do 25.º aniversário da nossa editora Touch and Go, que aconteceu há uns 5 ou 7 anos – talvez até há 10 anos atrás – os Big Black deram uns concertos em gesto de agradecimento à editora, mas foi muito penoso regressar àquele estado de espírito e tocar com autenticidade.
Eu não sou a pessoa que era aos 20 anos, o mundo já não é o mesmo, eu não estou a reagir às mesmas coisas e nem tenho os mesmos impulsos artísticos. Não tenho qualquer desejo de reviver essa parte da minha vida, não sou uma pessoa nostálgica e nem sinto qualquer apelo. Portanto, não me interessaria fazê-lo [voltar a tocar com os Big Black].
Se entre 1981 e 1987 Steve Albini integrava os Big Black, de 1987 ao final da década teve uma banda chamada Rapeman. Considerando que os tempos mudaram e que, apesar de tudo, a sociedade está mais conservadora, seria Albini capaz de escolher um nome tão controverso?
Bem, creio que há um conservadorismo generalizado, mas não creio que tem qualquer impacto em mim ou no público que curte esse tipo de música. O nome Rapeman foi uma espécie de capricho: nós não perdemos muito tempo a pensar nisso. Muito honestamente, não consigo defender esse nome, não consigo dizer que é um bom nome para uma banda. Mas também não considero muito relevante aquilo que uma banda se chama. Gosto de pensar que hoje sou alguém mais esclarecido e que não teria o mesmo ímpeto de escolher tal nome, mas considerando as circunstâncias de quando a banda se juntou e a cultura a que reagia, não estou disposto a desculpar-me apesar de ser evidentemente escandaloso.
Em pleno 2015, Steve Albini é considerado um ícone da cultura rock. Para mim, estar junto de alguém tão maior que a vida foi algo avassalador, especialmente pela simpatia e abertura com que se apresentou. Não hesitei em perguntar-lhe como é ser ele.
Eu não me vejo como um ícone rock porque quando olho para as outras pessoas que podem legitimamente ser apelidadas de tal, são artistas com carreiras muito mais profundas do que eu por terem alcançado mais pessoas e terem mudado o mundo da música. Eu fiz parte de uma onda cultural que foi muito excitante. O período entre a era do punk rock e os dias de hoje, foi o mais exuberante e criativo e emancipador para a Música, durante o meu tempo de vida. Fazer parte disso foi uma experiência transformadora que me definiu, ser elemento dessa comunidade intensamente criativa. Sinto que essa onda cultural merece o tipo de distinção que habitualmente atribuímos a indivíduos, não foi meramente a soma de diferentes personalidades mas sim uma ideologia e uma mentalidade libertadoras, da qual fizeram parte muitas pessoas de entre as quais os meus ídolos.
Uma das facetas menos conhecidas de Steve Albini é a sua paixão pela culinária, mostrada ao mundo através do seu blogue Mariobatalivoice, que não actualiza desde 2013. Estará à espera de aprender a preparar o molho da típica francesinha?
A cultura gastronómica portuguesa é fabulosa, aliás, é por gostar de comer que gosto de viajar, e dependendo de onde estás podes experimentar comidas muito diferentes. Não tenho actualizado o meu blogue porque tenho tido muitas outras coisas para fazer. Tudo começou como uma pequena partilha entre mim e a minha mulher, eu andava a documentar os jantares que preparava para ela. Quando acabou por despertar o interesse externo, eu alimentei um pouco essa curiosidade com uma escrita mais elaborada, mas a certa altura começou a transpirar uma espécie de pretensão para ser levado a sério naquilo. E eu não tenho tal desejo, apesar do empenho que tinha em publicar regularmente no blogue, que acabou por esmorecer. Talvez quando tiver mais tempo livre volte a escrever, pois gosto muito de cozinhar e pensar sobre comida – acho que ainda seria capaz de escrever coisas interessantes.
A conversa acabou neste tom de gostos partilhados. Sim, a nossa cultura gastronómica é fabulosa e perfeita para quem aprecia tais sabores. Nessa mesma noite, ver Shellac nas grades – como sempre – foi uma experiência ainda mais avassaladora. Steve Albini é um homem metódico, maduro e uber-profissional. Tocou, deu um concerto arrebatador, contemplou o público em crowdsurfing, e no fim voltou para guardar a sua guitarra e respectivas componentes, naquela mala que transporta à volta do mundo.
O Primavera Sound regressa ao Porto em 2016. E eu e os Shellac também.
| A entrevista decorreu no Porto, a 5 de Junho de 2015 |