Harry Dean Stanton (1926-2017)

por José V. Raposo em 17 Setembro, 2017

Em mais uma baixa de uma semana que já nos levou Frank Vincent (o inesquecível actor ítalo-americano, Phil Leotardo em The Sopranos e colaborador fiel de Scorsese em Raging Bull, Goodfellas e Casino) e o genial Grant Hart, dos não menos geniais (e influentes) Hüsker Dü, chegou a notícia da partida de Harry Dean Stanton, o lendário actor norte-americano.

Harry Dean Stanton terá já vindo ao mundo com a cara marcada pelo tempo – por outras palavras, já nasceu velho – no dia 14 de Julho de 1926. Nasceu também estóico e lacónico, mas com uma alma indestrutível. Atravessou a Segunda Guerra Mundial e fez-se à vida da interpretação, estudando representação na Universidade do seu Kentucky natal – começou pelo teatro (com toda a escola clássica e de Shakespeare, o actor anglo-saxónico comme il faut) e pela televisão (coboiadas e uma presença em Alfred Hitchcock Presents), mas depressa tratou de se virar para o cinema, pois “era disso de que realmente gostava”, como proclamou em Partly Fiction (Sophie Huber, 2012), documentário sobre a sua vida e carreira.

Em Paris, Texas (Wim Wenders, 1984) foi o irmão e pai angustiado e errante, de memória e família dispersas, em busca da redenção pela reunião de sangue. Já em The Straight Story (David Lynch, 1999) foi ele o procurado pelo irmão, em total compatibilidade com a história. Duas interpretações que espelham a vida e a carreira de Stanton: crescimento como actor e procura de um lugar próprio e, aquando da veterania, ser procurado por quem mais lhe queria.

Um paralelismo: se a música dos The Fall era, para John Peel, sempre diferente e sempre a mesma, Harry Dean Stanton era sempre diferente mas sempre a mesma personagem. Do excepcional laconismo em Alien à tentativa de redenção e consequente rendição moral e emocional em Paris, Texas , passando pelo alucinado Bud em Repo Man (Alex Cox, 1984), Harry Dean Stanton oscilou entre a voz da razão no meio da maralha e o marginal que graciosamente convive com os demais, sem se comprometer com a imprudência (salvo quando andou à procura do gato em Alien).

Se não precisava de levantar a voz para se fazer notar (salvo como o pai de uma atormentada Molly Ringwald em Pretty in Pink; Howard Deutch, 1986), sabia cantar o que lhe ia na alma e o cancioneiro tradicional norte-americano – vide as interpretações na guitarra em Cool Hand Luke (Stuart Rosenberg, 1967) e, na harmónica, o clássico You Got To Quit Kicking My Dog Around de Jimmie Driftwood em Kelly’s Heroes (Brian G. Hutton, 1970). De pregoeiro na carreira conhecemos-lhe o seu papel de São Paulo em The Last Temptation of Christ (Martin Scorsese, 1988); dramática oratória de peito feito, autêntico marketing religioso em contradição com o Jesus Cristo iconoclasta e vulgar de Willem Dafoe.

Também foi matreiro, instigador e displicente, como em Cisco Pike (Bill L. Norton, 1972) e Pat Garrett and Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973) – acompanhado do companheiro de cancioneiro e de película Kris Kristofferson.

Já mais adiantada na carreira foi a frutuosa parceria com David Lynch: quatro filmes, incluindo uma participação em Twin Peaks: Fire Walk With Me e no regresso da série ainda este ano; e um monólogo de fundo em Inland Empire (2007). Passeios de excentricidade e mais uma mão-cheia de punchlines numa carreira que bem poderia ter contado com uma presença num filme de Manoel de Oliveira.

De figurante a actor de passagem, a actor secundário de substância e, por fim, a oráculo, Harry Dean Stanton foi um actor invulgar, que deixou indelevelmente marca nas obras em que participou, mercê do talento de quem escreveu e realizou os filmes que protagonizou, mas também da sua forma única de estar na vida, perfeitamente plasmada para o grande ecrã. As olheiras mais imortais da História do cinema não mais fitarão as câmaras e as personagens, mas deixam cá muito para vermos.

E quem não gostaria de ser marinheiro, actor predilecto de grandes realizadores, declamador, padrinho de casamento de Jack Nicholson, músico e de terminar a carreira (e a vida) como personagem principal num filme que mais parece um documentário sobre si? Descrente de idiotices, pragmático e a fumar e viver mais do que os chatos dos conterrâneos? Assim se despediu de nós em Lucky (John Carroll Lynch, 2017)

“Ordinary fuckin’ people. I hate ‘em.”, proferiu em Repo Man.

Riiight.


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José V. Raposo

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