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É certo e sabido que todo o domingo é inequivocamente o dia do Senhor – mas muito pouca coisa nos faria deslocar, neste final de tarde quente e solarengo de Outono, até à Igreja de St. George, na Estrela, em pleno coração de Lisboa.
Não que a sua pintura rosada ou o bonito estilo victoriano, classicamente inglês, não nos encantem, mas o facto de este local de culto centenário se erguer no meio de um cemitério histórico, rodeado de centenas de lápides cinza pesadas com nomes gravados há mais anos que aqueles que conseguimos contar, seria suficiente para preferirmos a companhia dos patos e das crianças no jardim já ali ao lado.
Foi este, no entanto, o local escolhido pela promotora Nariz Entupido para acolher a estreia do inglês Daniel O’Sullivan em nome próprio em solo português – ele que até havia estado no Barreiro na noite anterior, subindo ao palco com os This Is Not This Heat numa memorável noite de Out.Fest.
Tomando a responsabilidade de uma primeira parte, perante o público, perante o mentor e perante Deus, o português Ricardo Remédio passeia-se nervosamente no exterior da igreja, recebendo-nos. Aquele que é provavelmente o mais interessante, e sem dúvida o mais bonito, ambientalista nacional, vem mostrar-nos ao vivo o seu último álbum, “Natureza Morta”, lançado este ano pela Regulator Records, e produzido pelo próprio O’Sullivan.
O Ricardo não é propriamente um novato no mundo da música – foi durante anos parte fundamental dos LÖBO, tendo depois assumido o acrónimo RA como projecto pessoal. Em ambos os casos, a música que desenvolveu sempre foi soturna e agressiva. Não num sentido propriamente violento, mas num sentido desgarrado e ruidoso. Muito ruidoso. Recordamos, com alguma saudade até, alguns dos concertos que vimos dele no passado, em que a própria neblina tremeluzia perante as fortes pulsações do seu drone.
A mudança de persona, assumindo o nome próprio, vem também demarcar uma nova abordagem do músico. Assumindo posição central frente ao altar, o português senta-se muito direito e faz desenvolver, desde a mesa e com destreza, uma sonoridade bastante mais límpida e incisiva que aquela que estávamos habituados a reconhecer-lhe. O drone é uma constante; funcionando como base criativa, vem conferir ritmo à narrativa, através de texturas fortes e ásperas. Surge então uma tensão melódica por cima deste emaranhado, complementando o conteúdo de forma confiante e balançada, entre apontamentos eléctricos de uma escala alargada de agudos, reverberações uivantes, e uma fluidez muito orgânica.
A atmosfera criada é amplificada pela acústica da igreja, fazendo ecoar este colorir de uma tela paradigmática densa e expectante, oferecendo-lhe uma enorme vivacidade. A convivência com O’Sullivan é notória e fortemente demarcada pelo próprio Ricardo em entrevista, que lhe agradece a influência no desenvolver deste álbum, e no alargar do seu horizonte criativo. Pouco mais de meia hora depois de se sentar, o sadino levanta-se, agradece e sai de cena.
Enquanto os organizadores se sentam nos degraus do altar da igreja e acendem algumas dezenas de velas, respiramos o incenso que queima ali ao lado e reconhecemos a ambiência construída. Aguardamos expectantes a chegada, enfim, do descomprometido Daniel O’Sullivan, que daí a nada tenta explicar-nos, em poucas palavras, o enredo que nos traz, enquanto assume o seu lugar e enaltece o local do concerto. Atrás de si, um forte holofote esconde-lhe as feições e definições na contraluz, fazendo bailar no movimento das velas a sua silhueta alta, esguia e descalça.
Se há história que não poderemos contar num parágrafo apenas, é a sua. A proactividade do multi-instrumentalista de terras de Sua Majestade é lendária, e apenas suplantada pelo número de projectos com que já se envolveu, fosse enquanto músico, produtor ou apoiante em concertos ao vivo. Um autêntico polvo que se sabe mover, estender e entender a fauna, tocando em múltiplas áreas do espectro sonoro, e tendo no seu currículo discográfico álbuns com os Guapo, com quem cresceu, Miasma, Ulver, Grumbling Fur ou Mothlite.
Chega até nós, no entanto, em nome próprio. Daniel é, afinal, um experimentalista, e seria sempre e apenas uma questão de tempo até que as suas orquestrações, que pessoas como ele, e como o Ricardo, tendem a construir na solidão das suas fortalezas, vissem a luz do dia sob uma nova identidade. “VELD”, registo lançado igualmente este ano pela O Genesis, a label de Tim Burgess, é o reunir e o culminar de uma narrativa que o autor diz definir uma fase muito própria da sua existência.
Por entre um marasmo de coros angelicais, o inglês inicia a sua actuação com um crescendo reverberativo que não tarda a impor a sua presença na igreja de forma intensa e assertiva – possivelmente o único acto do género que lhe iremos ver, como se de nós exigisse toda a atenção. De uma simplicidade imensa, e ao mesmo tempo de forma natural e quase intuitiva, Daniel O’Sullivan faz-se assemelhar a uma criança que cresceu demasiado e irrompeu pelas roupas, pela forma como brinca com a mesa e faz dela encarrilharem sons de intensidade rítmica dissonante, montando uma malha lógica por um trilho pouco provável, mas saciante.
Nas suas mãos vai unindo elementos deslizantes e ecoantes de sonoridade delicodoce e suave, à qual empresta a sua própria voz, distorcida e fugaz, esforçada e tratada como mais um elemento acústico ríspido, num contrabalanço da construção atmosférica. No seu todo, a música que constrói é lasciva, orgânica, carregada de um semblante positivo e aberto, tanto que se permite a si mesmo travá-la, recomeça-la, repeti-la, e servi-la três e quatro vezes sobre si mesma, ou adicionar-lhe aqui e ali travos opostos ou complementares quase apenas por vontade, por considerar que funcionam. A multiplicidade de fontes sonoras também o transmite – a espaços, o inglês leva ao microfone uma flauta, um violino completamente desafinado que provoca até ao zumbido pretendido, ou um gravador com snippets de vocais gregorianos.
A desvirtualização da fluidez sonora, enquanto veículo de construção da narrativa, ataca-nos os sentidos até ao ponto de hipnose expectante, sem sabermos ao certo com o que contar no passo seguinte, nesse processo que ecoa pelas arcadas da igreja como se esta fosse mais um destes elementos e lhe respondesse, distorcendo e repetindo o que o inglês oferece. Este desprendimento da matriz é finalmente quebrado quando este se vira para o teclado – ele que havia advertido no início que havia desenvolvido arranjos no piano, com o qual andava encantado, e que tocaria para nós algumas músicas novas. E o que nos mostra são baladas completamente diferentes do que até aqui nos havia dado. Dedilhares furtivos e lânguidos, efémeros, dançando entre períodos de calmia e silêncio ou na melódica voz de Daniel O’Sullivan, desta feita despida de distorção, como se um pianista em prática se tratasse, permitindo-se as falhas de concretização. Este é, afinal, um acto humanizante, contado em três cantigas, que afastam o intérprete da mesa electrónica, aquele bicho de som industrioso e mecânico, e o juntam a uma fragilidade harmoniosa que parece confundir o público, atónito. E é neste registo que nos agradece a hospitalidade e nos deixa durante uns minutos, pesando na escuridão, entre o saborear, o entender, e o agradecer.