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The Handmaid’s Tale, a adaptação televisiva do romance distópico de Margaret Atwood, sagrou-se grande vencedora dos Emmy 2017 na categoria de drama. Numa série de mulheres, foram premiadas Reed Morano (realização), Elisabeth Moss (melhor actriz) e Ann Dowd (melhor actriz secundária). A série arrebatou também o prémio de melhor argumento e melhor série dramática, tornando a Hulu no primeiro serviço de streaming a vencer este galardão. O que torna esta série tão especial?
Num futuro próximo, um movimento fundamentalista americano (Sons of Jacob) derruba o governo e suspende a Constituição a pretexto de criar uma sociedade livre das impurezas da contemporaneidade. Num território que passa a denominar-se República de Gilead, a nova teocracia cristã impõe uma sociedade construída à luz da leitura estrita do Antigo Testamento, militarizada e organizada por castas: Os Comandantes (altos funcionários da República de Gilead), as Esposas (mulheres dos Comandantes), Os Anjos (soldados de Gilead), Os Olhos (espiões que monitorizam o comportamento da população), as Marthas (domésticas e cozinheiras das casas dos Comandantes) e as Tias (as mulheres mais respeitadas, responsáveis pela doutrinação das Servas). Na nova organização social, a interacção social é pautada por verbalizações inspiradas no texto bíblico, a vigilância é constante e as execuções frequentes. As mulheres perdem todos os seus direitos – inclusivamente, o direito a ler, ao trabalho ou ao exercício livre da sua sexualidade – e a sua “utilidade” é reduzida à procriação. A rebelião significa a expulsão para as Colónias, um lugar inóspito onde ninguém sobrevive.
A história é narrada por Offred, uma das Servas, grupo de mulheres proscritas da nova ordem – por serem homossexuais, “promíscuas” (onde se inclui, por exemplo, serem casadas em segundas núpcias) ou terem deficiências físicas visíveis. No entanto, elas são férteis – e numa sociedade infecunda, não podem ser descartadas. Por isso, depois da sua captura e após um período de doutrinação forçada no Centro Vermelho, as Servas são atribuídas às boas famílias de Gilead com a missão de gerar uma criança. Para se distinguirem, recebem o nome do Comandante da residência. Offred – ou Of Fred – significa “De Fred”.
Também no Génesis, Lia e Raquel entregam as suas escravas a Jacob para que façam sexo com ele deitadas sobre os seus joelhos, na esperança que “através delas” pudessem gerar filhos. Em Gilead, este ritual chama-se “A Cerimónia”.
A ficção científica situada num futuro próximo é sempre apelativa, sobretudo se é suficientemente plausível. Nos últimos anos, cinema e televisão têm apostado em produtos desta natureza, muitas vezes explorando as alterações sociais e culturais instigadas pela tecnologização das sociedades (Her, de Spike Jonze, ou a série Black Mirror são óptimos exemplos). As mudanças expectáveis não são todas positivas, pelo contrário, mas as potencialidades da tecnologia – na saúde, na comunicação, na organização do trabalho – parecem ainda superar, aos nossos olhos, os problemas que arrastam. The Handmaid’s Tale apresenta uma hipótese evolutiva menos risonha e mais drástica, mas será o cenário completamente impossível? Aqui, a tecnologia é praticamente suprimida dando lugar a um retrocesso de meios (assistimos já, em muitos contextos, a movimentos tímidos de aversão à tecnologia). A poluição, alimentação inadequada e novas doenças daí decorrentes provocam um gravíssimo problema de fertilidade (soa-vos a alguma coisa?), que conduz à solução radical de obrigar as mulheres férteis que restam a gerar filhos aos seus amos – num acto sexual mecânico e ritualizado. Embora sejam consideradas propriedade dos Comandantes, as Servas são uma classe celebrada porque pode gerar vida, mas maltratada quando incapaz de o fazer. Os homossexuais (“traidores de género”), os professores, os resistentes da velha ordem e os médicos que praticam abortos são perseguidos. A ditadura religiosa que se instala em Gilead inspira-se numa reinterpretação ideológica das Sagradas Escrituras – podemos dizer que o mesmo acontece nos grupos radicais islâmicos, com a leitura do Alcorão e interpretação do Islão. A alienação global e a sujeição de toda uma sociedade a um regime totalitário de instauração súbita é algo que, infelizmente, também não nos é estranho.
Quando escreveu o livro em 1985 Margaret Atwood assegurou ter-se inspirado na observação de certas tendências da sociedade americana da época; 30 anos volvidos, a permanência de questões como a liberdade política, o fundamentalismo religioso, a igualdade de oportunidades para todas as raças e credos ou os direitos das mulheres reforça o valor simbólico (até prognóstico) do seu texto e torna-o assustadoramente actual. De facto, depois dos resultados das últimas eleições americanas, de retrocessos inacreditáveis em questões relacionadas com as alterações climáticas ou com o direito ao aborto, atentados quase diários e a possibilidade de uma nova guerra sempre à espreita, não é difícil imaginar uma mudança civilizacional radical.
A estrutura narrativa – que também segue de perto a do romance – alterna a acção com flashbacks que revelam o passado da protagonista (uma vida “normal” antes da revolução). Cada episódio, para além de acompanhar o monólogo interno de Offred, debruça-se sobre cada uma das personagens secundárias, revelando também o seu passado, revelando o seu substrato (algumas revelações são surpreendentes) e permitindo enquadrar cada vez melhor as suas motivações. Curioso, o espectador é compelido a construir a história à medida que acede às suas várias peças. O conteúdo é incomodativo, por vezes bastante explícito, e origina imediatamente várias reflexões e paralelismos com o mundo em que vivemos. Depois do primeiro episódio, é simplesmente impossível parar de ver.
O elenco inclui Joseph Fiennes no papel do Comandante Fred Waterford e Max Minghella no de motorista da família, e um dos Olhos do governo. Mas The Handmaid’s Tale pertence às suas actrizes. Offred é interpretada por Elisabeth Moss, uma actriz com provas dadas em televisão (Mad Men, Top of the Lake). Antes da revolução, Offred trabalhava numa editora, vivia com um homem que tinha abandonado um primeiro casamento por ela, tinham uma filha. Chama-se June. Em Gilead, é uma escrava, pertence a uma família é obrigada a ter relações com o Comandante. O conflito entre as duas situações obriga Elisabeth Moss a um duplo papel – June e Offred: a primeira, uma mulher moderna, alegre e despreocupada, a segunda, uma mulher apavorada, humilhada, privada dos seus direitos fundamentais e da sua identidade. O desafio não é fácil e Moss supera-o com distinção. O restante elenco é composto por Yvonne Strahovski (Serena Joy, a mulher do Comandante), Ann Dowd (a tia Lydia, instrutora das Servas), Samira Wiley (Moira, a melhor amiga de Offred) e Alexis Bledel (Ofglen, uma “traidora de género”). São todas brilhantes.
O potencial do romance de Margaret Atwood não se limita às questões sociais, políticas e filosóficas que levanta, tem também um potencial visual tremendo. Em 1990, o livro foi adaptado ao cinema pela mão de Volker Schlöndorff, com Natasha Richardson, Faye Dunaway e Robert Duvall nos principais papéis. O argumento foi escrito por Harold Pinter e a banda-sonora composta por Ryuichi Sakamoto. No entanto, apesar de todo o capital humano, não foi propriamente um sucesso da crítica – que afirmava ser um filme confuso, paranóico até. A adaptação da Hulu não economizou meios para dar ao livro a adaptação merecida. Em primeiro lugar, teve a preocupação de se manter fiel ao texto, quer no argumento, quer na realização, ora subtil e difusa, ora bastante gráfica. O design de produção – que segue também perto de as descrições do romance – é fabuloso: um ambiente cinzento e frio, rasgado pelas vestes – vermelho-sangue – das Servas, que vagueiam por Gilead como fantasmas (sempre aos pares, já que não lhes é permitido sair sozinhas), contrastando com a frieza do azul envergado pelas mulheres dos Comandantes, do verde-água usado pelas Marthas, do castanho usado pelas Tias ou do preto envergado pelos Comandantes. A fotografia equilibra na perfeição a tonalidade simultaneamente catastrófica e esperançada do texto. O guarda-roupa de Ane Crabtree, inspirado na iconografia cristã, é incrível, ao mesmo tempo opressivo e de uma elegância desconcertante. Por fim, destaque para os efeitos sonoros e banda-sonora minimalista, responsáveis pelo ambiente de tensão permanente. Na verdade, mesmo que a premissa não fosse tão fascinante, The Handmaid’s Tale valeria a pena pelo trabalho técnico envolvido. Talvez seja um dos raros casos em que a série não fica atrás do livro.
A segunda temporada estreará algures em 2018 e desvendará as acções e os resultados de Mayday, o movimento de resistência formado em Gilead. Por cá, continuaremos a acompanhar com entusiasmo mas por portas travessas – já que a Hulu não está ainda disponível em Portugal. Até lá, Blessed be the fruit.
(May the lord open.)