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“Selvagem“, o terceiro álbum de canções de Mariano Marovatto, foi editado em Julho passado no Brasil pela editora Embolacha e, em Fevereiro deste ano, chega a Portugal, aproveitando a mudança do músico para Lisboa. O repertório deste trabalho é assente exclusivamente em temas folclóricos brasileiros e portugueses que foram deixados de lado pela linha evolutiva e pela memória musical do grande público nos dois países e em baixo podem conhecer um pouco melhor cada uma das faixas do disco, nas palavras de Marovatto.
A versão original da canção foi gravada, inacreditavelmente, três meses antes da morte de Lampião. Penso que a Missão de Pesquisas Folclóricas, ao entrar no Sertão nordestino, deveria passar parte do tempo pensando na possibilidade de um encontro com os cangaceiros. Sabino, o outro cangaceiro citado na música, ficou famoso depois do ataque do bando no Rio Grande do Norte, em 1927 – era filho bastardo de um grande coronel pernambucano e aparece nas fotos sempre de óculos escuros. “Lampião” é uma espécie de proibidão do sertão. Assaltante, assassino, torturador, estuprador, racista, machista, Virgulino Ferreira, visto por Hobsbaum como um “bandido social”, não era nenhum Robin Hood. A fama, o poder, as habilidades e a crueldade de Lampião eram, para as forças políticas e policiais, motivo de inveja e não motivo de combate em nome da justiça. As crianças do sertão do século XX que viam a mediocridade das volantes policiais e o brilho das fardas dos cangaceiros, não demoravam muito para eleger seus verdadeiros heróis.
Lá Cima ao Castelo é uma moda cantada durante a Festa do Castelo que ocorre anualmente na primeira semana de maio em Monsanto, Castelo Branco. A festa celebra a vitória da aldeia sobre o cerco de sete anos do exército Romano, durante o século II. Além da referência ao castelo e à gastronomia da festa, a letra gira em torno do flerte de um rapaz com uma moça. Duas vezes Monsanto foi nomeada como principal aldeia histórica de Portugal, uma vez em 1938 e outra já em 1995. As características ancestralíssimas do povoado estão na sua arquitetura, nos diversos povos antigos que por lá passaram, e por fim, refletidas nas suas canções nativas. Hoje, as Adufeiras de Monsanto é o grupo folclórico que canta “Lá Cima ao Castelo” em festivais pelo país e pelo mundo.
Uma canção de colheita recolhida por Giacometti e Lopes-Graça em Bragança, “Agora baixou o sol” é um trecho de um longo romance sobre a Paixão de Cristo. O entardecer e a capa vermelha que Maria Madalena ofereceu a Jesus, ganham uma nova leitura, se descolada da ritualística católica. “Baixou o sol atrás daquela serra / levava capa vermelha”, na leitura que pretendi, são versos que servem para retratar o triste imbróglio brasileiro, no qual uma massa de manobra, em sua maioria branca de classe média, serve de claquete para os poderosos golpistas da direita conservadora que tomaram o país e instauraram um inimigo invisível comunista vermelho a ser combatido. Uma canção contra a mediocridade cognitiva da política brasileira.
Embarquei para Portugal é parte de um reisado gravado na Paraíba. A temática é estranha, mais típica das marujadas do que dos reisados em si. É a canção que – no seu enredo – conecta os dois mundos que habita Selvagem, o nordeste brasileiro e o norte português. Intimamente é uma canção que eu sempre quis no disco por conta dos dois mundos que habito: Rio de Janeiro e Lisboa.
Cantiga de roda, gravada em Patos na Paraíba por uma dúzia de meninas de uma fazenda. A melodia famosa também serve ao “marcha soldado”. “Casinha” é uma pequena mostra de como as melodias e as letras, voam com o vento, na cultura musical oral do Brasil.
A segunda canção de colheita do disco tem referência direta ao meu sobrenome original, Perdigão. Inicialmente sobre um pássaro, pretendo que a cantiga fale sobre mim. Assim como “Agora baixou o sol”, a outra música de colheita do disco, “O perdigão” não tem participação da guitarra de Pedro Sá. Aqui aparece pela primeira vez a voz de Ami Yamasaki, fazendo um coro imaginário de perdigões e cantando parte da letra em japonês. Perdigão é um pássaro recorrente na lírica portuguesa, como vemos, por exemplo, no poema de Camões “Perdigão perdeu a pena / não há mal que lhe não venha”. Perdigão é um pássaro que está sempre a fazer coisas ao avesso, parece.
Aricuri é o nome da palha do coqueiro com a qual a tribo indígena Pankararu, originária do Brejo dos Padres, de Pernambuco, faz a sua indumentária do ritual praiá, ritual e vestimenta tais que tornaram-se fetiche do modernismo de Mário de Andrade. Já há muito tempo assimilados culturalmente pela igreja e pelo homem branco, os Pankararu não falam mais sua língua original de vertente tupi há tempos e, assim como em quase todas as culturas indígenas brasileiras, a vasta maioria de suas cantigas ritualísticas possuem um indissociável tema católico. “Chamada de aricuri”, porém, é uma exceção. Aqui, novamente Ami, com ajuda da guitarra de Pedro Sá, cria uma atmosfera animalesca – um drone indígena nipônico brasileiro.
Mineta, que era cantada pelas fiandeiras transmontanas, é uma versão local do conhecido e extenso romance “O cego”. Difundida na Península Ibérica e no Brasil, de acordo com Almeida Garrett, a história do cego (que em Mineta é o “pobre à porta”) tem origem nas aventuras do rei escocês James V que, no século XVI, fingia-se de cego pedinte e contava casos fantasiosos para conquistar incautas moças camponesas. Depois de gravar a canção descobri que a “roca” de onde o “pobre” estava a espiar é uma espécie de torre de guarda de origem romana. O fragmento cantado aqui, desse romance, destacado de seu contexto original, parece uma formidável canção de retorno para um disco que começou com um menino querendo dinheiro da mãe para se armar como Lampião e desbravar o sertão universal.
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)