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Personal Shopper é um filme sobre o olhar soturno de Kristen Stewart, sobre as suas costas arqueadas, as suas roupas em desalinho, os tremores das suas mãos. É, em suma, um filme sobre o fascínio que a actriz americana despertou em Olivier Assayas desde as rodagens de Clouds of Sils Maria (2014). O mote para a deambulação de Maureen (Stewart) é a morte do seu irmão gémeo, Lewis. Ora, este fora um médium, diz-nos ela, e prometera enviar-lhe, após a morte, mensagens do além para lhe provar a existência do mesmo.
As incongruências do argumento de Assayas começam logo por aí: passados três meses do desaparecimento de Lewis, Maureen encontra-se em Paris, onde o outro trabalhara e vivera, «à espera» de um sinal. Embora não planeie demorar-se nesta cidade, em vez de procurar um emprego ordinário, opta por trabalhar como personal shopper de Kyra, uma celebridade que a intimida mas que, ao mesmo tempo – e apesar de, segundo todas as hipóteses, estas não se poderem conhecer há mais do que três meses –, lhe confia as chaves de casa e cheques em branco. Com a sua figura prostrada e o desleixo para com a própria aparência, a Maureen que deslumbra Assayas parece pouco plausível como assistente de uma personalidade do mundo da moda. Toda a estadia em Paris soa pouco coerente. No primeiro plano do filme, a câmara desce sobre o portão de entrada da mansão de Lewis – um inconfundível casarão de filme de terror que dificilmente um jovem conseguiria comprar sozinho – de encontro Maureen, que vem com o propósito de comunicar com o espírito do irmão. A pergunta que se impõe é porquê esperar três meses para ir ao local mais provável para esse contacto, se fora de facto essa a motivação para a passagem por Paris. Outra questão desconcertante é o porquê de ser outro espírito, e não o do irmão, o único que a visita durante essas pernoitas na mansão.
Entre as compras de roupa e acessórios para Kyra, a busca de Maureen pelo espírito do irmão mantém-se acessa na memória do espectador através das suas descobertas sobre a mediunidade de artistas do passado – Victor Hugo e Hilma af Klint – feitas através de novas tecnologias, a que o filme alude explicitamente como forma de comunicação e de ligação entre pessoas. Maureen está permanentemente ligada ao computador, onde vê vídeos, via Youtube, e por onde comunica, via Skype, com o namorado – com quem a protagonista dialoga de forma artificial, informando sobre pormenores apenas úteis ao espectador; está especialmente ligada ao telemóvel, por onde comunica com uma personagem misteriosa que lhe escreve anonimamente. A câmara incide com (demasiada) frequência no ecrã deste telefone, onde Maureen lê, em simultâneo com o espectador, as mensagens que apenas ela poderia conseguir relacionar com o irmão morto. A correspondência rapidamente se passa a assemelhar mais a um clássico roteiro de perseguição e manipulação do que a uma comunicação com o além. É, aliás, através destas mensagens anónimas que o medo de Maureen – o clássico medo excitado de infringir as normas estabelecidas e de desejar ser-se quem não se é – se revela para lá do olhar receoso que dificilmente se ergue do chão e que nunca consegue fitar directamente o interlocutor. Aquilo que atormenta a protagonista tem de ser anterior à morte do irmão e motiva a falta de capacidade para contactar directamente com os vivos. Daí que as confissões surjam apenas em mensagens com um desconhecido, excluindo a existência de um contacto físico. Ainda assim, a facilidade com que Maureen foge (bloqueia o telemóvel) e se aproxima do desconhecido (enviando-lhe, por exemplo, fotografias auto-incriminatórias para depois lhe perguntar ingenuamente se o outro as terá entregue à polícia) revela a baixa densidade psicológica da protagonista.
Com o trágico, mas expectável, desfecho da correspondência electrónica, Maureen assume finalmente que a sua estadia em Paris é inútil. Aliás, pensará o espectador, se o objectivo é contactar com um espírito, qualquer lugar servirá. Desse modo, mesmo no outro lado do mundo, onde se vai encontrar com o namorado, Maureen ouve, talvez sem esperar, os sinais por que tanto ansiava. Na sequência final, quando consegue finalmente contactar o irmão, a inverosimilhança das respostas deste levam-na à pergunta que dá realmente mote ao filme: «estás mesmo aí, ou sou apenas a imaginar?» A resposta mental é imediata e é graças a ela que Maureen fita finalmente a câmara e, com ela, o mundo que existe para lá da sua imaginação e da sua obsessão. É ainda assim de ressaltar a ambiguidade desta conclusão, visto que antes da partida de Paris, Assayas mostrara ao espectador, e escondera de Maureen, o vulto de Lewis a quebrar um copo para atrair, sem sucesso, a atenção da irmã. O momento mais insólito do filme ocorre, na minha opinião, quando se encena a saída de um espírito do hotel onde Maureen deverá encontrar o seu misterioso remetente, como se fosse possível, para algum espectador, considerar ainda plausível que este não fosse de carne e osso.
À semelhança de um jogo de crianças, mais interessadas no prazer obtido no imediato do que em solucionar algum problema ou alcançar alguma conclusão, Assayas brinca com o escuro e com as sombras que envolvem Kristen Stewart, estudando ao pormenor os seus movimentos e os contornos do seu corpo e deixando, consequentemente, o argumento pecar por insensato e desconexo. Filmar com este detalhe os gestos de uma actriz é uma forma como qualquer outra de explorar o obscuro da imaginação e da obsessão humanas. O mais difícil é fazê-lo sem um argumento forte que permita o acesso, por parte do público, a um interior alheio. A incoerência da salada que envolve o espiritismo num thriller, na verdade pouco «psicológico», retira a atenção devida à sua protagonista que, para o bem ou para o mal, representa com o exagero que Assayas pretende dela.