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The Age of Shadows
Título Português: A Idade das Sombras | Ano: 2016 | Duração: 140m | Género: Espionagem, thriller, acção
País: Coreia do Sul | Realizador: Kim Jee-woon | Elenco: Song Kang-ho, Gong Yoo, Han Ji-Min

Em tempo de fracas propostas para os Óscares e de contínua ascensão qualitativa da televisão e da Internet somos levados a procurar alternativas cinéfilas noutras longitudes e latitudes. Kim Jee-woon (ou Jee-woon Kim) é um realizador de culto sul-coreano, com obra feita e passado no teatro e um estilo próprio – pastiche e trama tarantinescos e acção estilizada na veia das agora irmãs Wachowski, de Sergio Leone e de Jean-Pierre Melville –, como se vê em Bittersweet Me (2005) e sobretudo no genial The Good, The Bad, The Weird (2008). Aproveita aqui a onda dos filmes históricos sobre a resistência contra a ocupação japonesa da Coreia no século XX, iniciada em 2015 com Assassination, de Choi Dong-hoon.

Neste enquadramento mergulhamos em A Idade das Sombras, de 2016. Mantendo a toada estilística, vemo-nos num negócio obscuro e fraudulento num pagode, ombro a ombro com a resistência coreana contra a ocupação japonesa, algures nos anos vinte. Kim não perde tempo e, em cinco minutos, leva-nos a uma fuga de um resistente por telhados reminiscente de O Tigre e o Dragão (de Ang Lee, 2000) e gore à moda de Ronnie Lott. Situação resolvida pelo traidor (será?) capitão Lee-Jeong Chool (Song Kang-ho; actor de relevo, veja-se no magistral Memories of Murder), personagem cimeira da película – e também a mais complexa.

Fiel mainato dos japoneses prima facie, cedo descobrimos as suas nuances: vai investigar a loja de antiguidades/esconderijo de Kim Woo-jin (Gong Yoo), resistente fuinha, mas a cumplicidade entre ambos estranha. A elegância técnica é patente, seja na fotografia ou no guarda-roupa. Mais de meia hora decorreu e estamos no meio de um argumento sofisticado, com curvas e contra-curvas político-patrióticas: o capitão Lee era, afinal, um velho combatente da resistência, e o resistente Kim Woo-jin tem no bestunto trazê-lo de volta para o lado certo da moral e da História – com uns copos pelo meio e a lição de que, quanto mais importante o encontro, maior a bebedeira.

O ambíguo capitão Lee, o centro do filme (Song Kang-ho)

Porém, nem tudo é perfeito em A Idade das Sombras: os japoneses são o estereótipo da Segunda Guerra Mundial, uns Herr Flicks orientais (Hashimoto quase caricatural, por Um Tae-goo) e a Xangai da época, manta de retalhos política e económica, merecia um retrato mais pormenorizado – até a banda desenhada de Hergé/Tintim, O Lótus Azul, foi mais fundo). Tirando Chool e Jin, as personagens ficam sabem a pouco; Hashimoto, o perito em explosivos húngaro Ludvic e a femme fatale Yeon Gye-Soon (Han Ji-Min) ficam-se pela incipiência.

De Seul para Xangai e mais jogo do gato e do rato típico do género; o capitão Lee entre a lealdade a quem lhe paga e a consciência de Pátria – num diálogo, a frase que faz o filme: “até um vira-casacas só tem uma Pátria”. Na complexa Xangai, cada riquexó uma intriga e cada par de olhos um interesse à coca. O desespero de quem resiste e arrisca justifica o túmulo.

O elo de ligação Kim Woo-jin (Gong Yoo)

E quem são os resistentes? As facções da resistência coreana eram mais do que muitas, não especificando o filme de qual se trata – conhecemos um líder genérico, Che-San (Lee Byung-hun), que desaparece com a rapidez com que apareceu. E um anacronismo: fala-se no Estado-fantoche sino-japonês Manchukuo, que só seria criado com a invasão japonesa da Manchúria, em 1931, após o fraudulento Incidente de Mukden.

A caminho do fim, o momento da resistência e do filme: trinta minutos de periclitante sequência num comboio que deixariam Hitchcock (e o seu Strangers on a Train), Reed (Night Train to Munich) e Lumet (e o seu Poirot de Murder on the Orient Express) orgulhosos. Intricados planos, que seguem diálogos fortuitos e movimentos inócuos – o capitão entalado e a dançar entre poderes e ideais e os explosivos (e um traidor!) à espera. Kim Jee-woon não foge às raízes e o tiroteio que brota da tensão resulta num Coreia 4 – Japão 0.

Calmaria antes da tempestade ferroviária (Han Ji-min)

Num jogo de analepses, a tragédia à chegada a Seul – mortes, prisões, a célula desfeita e as ambiguidades de Chool. O tiro ajustado japonês apaga a esperança, com fotografia digna de Neil Leifer quando registou Ali/Clay vencendo Williams – sobra em estilo o que falta em profundidade.

O capitão Lee, personificação do homem dividido.

Como o filme é patriótico e foi candidato a candidato a Óscar, o último acto é de anti-herói: Chool vira Deus ex machina, o herói que leva a película a um full circle através dos explosivos contrabandeados, flagelando o imperialismo nipónico. Reina a satisfação num filme desequilibrado mas com qualidades (ainda que longe, muito longe da obra-prima L’armée des ombres, de Melville), que nos deixa a lição de que, quer para o capitão Lee, quer para o (agora morto) negociante do início, vale que até os vira-casacas só têm uma Pátria.


sobre o autor

José V. Raposo

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