//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
A música, como qualquer outra forma de arte, tem uma componente cíclica na sua história, de géneros que se moldam a uma nova era, ou que reapropriam o seu passado. No imediato, analisar estas correntes é difícil, mas, com o passar do tempo, as linhas definidoras tornam-se mais claras. Esse distanciamento permite aferir melhor os seus contornos e ligar movimentos artísticos a acontecimentos históricos; perceber as influências é, simultaneamente, entender um pouco mais de uma dada obra.
Um dos bons exemplos da passada década reside no segundo disco do alemão Ulrich Schnauss, que se apresenta no próximo dia 12, num inédito concerto em Portugal, no Porto. Chama-se “A Strangely Isolated Place”, e foi lançado em 2003. Por alto, é um álbum de traços ambientais, que nunca se permite a ser demasiado contemplativo e melancólico. Junta-lhe uma componente rítmica, com imensas texturas electrónicas (“de várias cores”, como o próprio salienta) a cargo do extensivo uso de sintetizadores. Além disso, e a propósito do primeiro parágrafo, Ulrich bebeu imenso à estética do shoegaze, um género baseado na manipulação da distorção da guitarra, sempre no limiar entre a melodia e o ruído muito em voga nos anos 90. O som fica encorpado e expressivo. Foi uma adaptação inteligente e que lhe valeu uma crítica generosamente unânime em relação à sua produção.
“Queríamos trazer de volta à electrónica uma componente de songwriting, porque, por essa altura, sentíamos que estava abstracta e glitchy”. O músico alemão está, neste momento, radicado no Reino Unido, donde nos fala pelo Skype – “Algo mais humano, mais melódico, e decidimos experimentar o shoegaze, porque já havia funcionado há 15 anos atrás”. O uso do plural implica mais músicos a fazê-lo, e ele prontamente enumera uma série deles, como se o seu trabalho, afinal, não se destacasse entre os demais. Nesta decisão estratégica, o sintetizador permitiu-lhe chegar à melodia na sua música, como uma parte manifestamente orgânica, em contraste com a electrónica mecanizada à qual se opôs. Além disso, há uma certa inocência retida nas suas composições, um deliberado apelo à emoção manifesta sem subterfúgios, que, por sua vez, a tornam mais acessível: o próprio já admitiu que a sua música sempre se pautou por ser escapista, e não confrontacional. E é uma decisão consciente, afinal. “Quando era miúdo, tive uma infância delicada. A música salvou-me porque era o meu porto seguro, quando colocava os headphones e ia para um outro lado. Quando comecei a fazer música, era como desaparecer durante 5 ou 6 horas de cada vez. E isso é terapêutico, e saudável, até” .
“No fundo, talvez queira apenas criar algo belo, que vai de encontro ao que nós apreendemos da realidade. […] Não gosto de coisas unidireccionais: algo que seja “apenas” negro, ou algo que seja “apenas” bom; gosto de coisas que sejam boas, mas um bocadinho “lixadas”. A vida não é como nas músicas do Justin Bieber, simples e linear. Muitas vezes, um “adeus” é também um “olá”. Um fim marca o início de uma outra coisa.” Esta dicotomia remete-nos, novamente, à comparação com o shoegaze – um estilo de música melódico e ruidoso, como uma contradição que divide irmamente a nossa atenção.
A sua naturalidade alemã permitiu-lhe um contacto privilegiado com a história musical do seu país. O sintetizador goza de uma singular importância nos anos 60 e 70 da contra-cultura alemã (neste caso, o krautrock), quando, entre outros, Tangerine Dream e Kraftwerk os popularizaram. O resto do mundo reconhece a influência e o mérito artístico dessa corrente, embora, segundo Ulrich, nunca conquistou a Alemanha. “Uma das mais erradas ideias em relação à nossa cultura, é que os britânicos pensam que é igual à deles. No Reino Unido, tens várias cenas underground, que depois vazam para o mainstream. Na Alemanha, podes ter um undeground fortíssimo, que isso nunca vai acontecer.” Resquícios, adianta depois, de “uma sociedade pós-fascista”. Na sua opinião, o Reino Unido e a sua multiculturalidade são mais tolerantes, e esse foi um dos motivos que o levou a assentar em terras de Sua Majestade. Para, em princípio, não mais voltar.
Dos artistas que preencheram essa contra-cultura, é inegável que uma das suas maiores influências tenha sido Edgar Froese, falecido recentemente, e mentor do projecto Tangerine Dream. O sintetizador é proeminente em álbuns como Zeit (1972), Phaedra (1974) e Rubycon (1975), que lançaram as bases que músicos como Ulrich explorariam anos mais tarde. “Conheci o Edgar há muito tempo, nos finais dos anos 90. Sempre foi uma das minhas maiores influências, e não só musicalmente: também em termos de ideias, de uma forma mais abrangente”. Acontece que, desde o ano passado, Ulrich Schnauss é integrante do grupo Tangerine Dream, e tem participado nos concertos da banda. “Estamos a trabalhar algumas ideias musicais que nos deixou antes de morrer, e estamos a dar o nosso melhor para que sejam fiéis aos seus planos para o futuro do projecto. Por enquanto, é responsabilidade suficiente sobre os nossos ombros.”
De volta ao presente, resta-nos antecipar o seu concerto na próxima quinta-feira, no Passos Manuel no Porto, em colaboração com a artista visual russa Nat Urazmetova, que utiliza pedaços de vídeo gravados um pouco por todo o mundo. No caso de Ulrich, nem sempre foi fácil a transposição da sua música orgânica para um contexto de concerto. No início, “usava uma música de fundo e improvisava um pouco por cima. Sentia que fazia batota. Agora, com os novos softwares, é-me possível utilizar loops pré-gravados e manipulá-los ao vivo. Depois, estando com audiência sentada, exploro mais um som ambient; ao contrário, num recinto em pé, permito-me a trabalhar mais a parte rítmica das minhas músicas”.
Para o futuro, há um novo disco quase a ver a luz do dia – e mais trabalho com os Tangerine Dream – que promete voltar a terrenos onde já foi feliz e dos quais, intencionalmente, se afastou. “Já fui mais confrontacional nesse aspecto; tenho uma tendência, quando noto que algo se torna trendy ou demasiado conhecido, de me afastar dessas sonoridades. Mas, de momento, já estou mais tranquilo. Neste último trabalho, recupero a espaços alguma dessa sonoridade. Até porque o álbum “Far Away Trains…” já foi há cerca de 15 anos. Estou pronto para voltar a essa estética”. Contando que Ulrich faça a sua música com o mesmo espírito livre que lhe pautou a carreira desde o início, sabemos, por certo, que valerá a pena acompanhar. Pode não nos levar aos mesmos sítios, mas será uma viagem igualmente prazerosa.
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)