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De boina clássica, barba aparada e cigarro de enrolar na mão. É assim que encontramos Mazgani num recanto do bucólico Jardim da Estrela. A tez da sua pele, queimada por outros sóis — Shahryar nasceu no Irão em 1974 — conta-nos tanto ou mais do que o próprio homem, pelo que nenhuma conversa consigo poderia apenas e só ser sobre o seu recente disco de covers. O resultado foi uma entrevista divida em duas partes: uma sobre “Lifeboat” e a outra, a última, sobre a sua terra natal, a esperança nas pessoas e a crença nas incertezas.
Quando é que surgiu a vontade de trabalhar versões de outros artistas?
Eu diria que no meu caso a vontade de fazer versões foi tardia, por sempre me sentir incapaz. Eu comecei a fazer as minhas músicas por limitação. Por não saber tocar as músicas dos outros fazia as minhas e agora, com algumas canções e discos já feitos, senti que era capaz de fazer este álbum, um disco de versões. A decisão foi espontânea, não ponderei muito o processo, foi algo que fiz com relativa rapidez e muito entusiasmo.
Foi livre durante todo o processo?
Sim, é justo dizer que sim, que fiz o que quis e o que me apeteceu fazer.
Quando surgiu este projeto já tinha os temas definidos? Andou muito tempo à procura dos discos e temas certos nas gavetas de casa?
Sim, porque a lista de canções que queria trabalhar era interminável e tinha de encontrar um critério, uma temática, uma estética. Tive também de perceber o que é que conseguiria fazer de meu, se poderia cantar aquelas histórias à minha maneira e portanto, sim, envolveu esse período de pesquisa.
Foi uma tarefa morosa?
Eu diria intensa, obsessiva. Quando me lancei a este disco passava os dias a ver possibilidades.
Acha que a versão é mal compreendida pelas pessoas e pelos jornalistas? Há quem lhe tenha perguntado se este disco de covers resulta de um período de fraca inspiração…
Não acho que haja falta de criatividade nem falta de compreensão por parte das pessoas; acho é que há um disco para se ouvir e depois ajuizar. O resto são falsas questões. Honestamente, sinto-me profundamente grato por ter gravado este disco com as músicas que escolhi, com os músicos que me quiseram acompanhar e por ter o prazer de estar aqui a falar contigo sobre ele. Acho que o mundo está a ser muito hospitaleiro para com ele…
Falou nos músicos que o acompanharam neste álbum. O Sérgio Mendes (guitarrista) e o Vítor Coimbra (baixista) têm sido uma presença constante nos seus trabalhos desde o principio da sua carreira. O que é que funciona tão bem entre vós?
Somos amigos… A nossa relação extravasa em muito a cumplicidade que temos enquanto músicos. São tipos com quem posso ir de férias, são tipos que adoro. A presença deles na sala é importantíssima, é bastante valiosa, são pessoas que quero ter do meu lado do ringue. Neste disco trouxe de volta também o Hélder Nelson, que que já tinha contribuído para o Song of Distance…
Sentiu que estava a correr riscos ao fazer versões de artistas menos próximos de si, como os Bee Gees ou a Chavela Vargas?
Acho que há trabalhos bem mais arriscados do que o meu… [risos] Os tipos que limpam janelas de prédios com 120 andares é que, de facto, arriscam alguma coisa, não eu…
Se as pessoas não gostarem corre o risco de ficar desempregado…
Não acho que seja um risco por aí além. Riscos correm as pessoas que fazem coisas realmente sérias. Se alguém cair na rua não vais ouvir “socorro, chamem um músico”, as pessoas chamam logo um médico, porque esse é que corre riscos a sério…
Percebo…
Dito isto, acho que me cabe sempre a tarefa de tentar desbravar territórios que desconheço, e isso envolve sempre risco. Eu tenho sempre de estar à procura da nova terra incógnita, tenho sempre de criar novos mapas para mim próprio e para quem me escuta. Se não houver risco não vale a pena fazer. Só quero fazer discos a partir do momento em que a possibilidade de falhar for enorme. O Beckett diz:” falhar, falhar de novo, falhar cada vez melhor” e é isso que o artista deve fazer. O artista deve sempre ter a cabeça no cepo, deve sempre arriscar.
Diz que ninguém chamaria um músico se alguém caísse na rua, mas o “Lifeboat” é um disco de canções de artistas que lhe salvaram a vida de uma maneira ou doutra…
Isso foi num contexto diferente. Acho, com toda a sinceridade, que as canções se inscrevem no território das coisas que nos podem salvar a vida, no território da arte, das coisas que realmente importam. As canções safam-te de sarilhos tremendos imediatamente, mudam-te o dia imediatamente, entram-te nas veias imediatamente, dão-te horizontes imediatamente, fazem com que te atrevas e relativizes imediatamente; são um porto de abrigo, um barco salva-vidas.
Todas estas canções já lhe salvaram a vida?
Sim, é justo dizer que sim, todas elas. Sendo que algumas determinaram o rumo da minha vida — e não estou a ser leviano. Eu não faria canções se não fosse o Leonard Cohen; se aqui estou a falar contigo é graças ao Leonard Cohen, acredita. Se não fosse o Cohen, eu não sabia que era possível escrever canções daquela maneira… Foi a minha estrada de damasco. Para mim foi como um mestre, alguém que me apresentou um horizonte longo e vasto a explorar.
Foi difícil conseguir os direitos das músicas?
O processo foi surpreendentemente rápido. Quando mostrei as canções à minha editora, disseram-me que as que tinham sido mais transformadas precisariam de aprovação e prepararam-me para todos os cenários possíveis, desde a demora ao chumbo, mas felizmente recebemos respostas positivas de todos os artistas em poucas semanas…
Houve algum tema mais difícil de trabalhar? As canções são tão diferentes entre si…
Não sei dizer bem. Neste disco, cada tema ditou um método de trabalho especifico, sabes? Normalmente a canção é que se impõe e te diz como é que a deves trabalhar. Tu dás-lhe um pouco de ti e ela ganha vida, dizendo-te como é que a deves abordar, como é que a deves gerir… [pausa] Mas nunca me deixei de mover dentro minhas limitações. Este disco há sempre de soar a Mazgani porque foi criado dentro do espaço onde eu me movo habitualmente, onde me expresso.
Está a trabalhar os temas ao vivo para os tocar liberto de instrumentos, certo?
Sim, gostava de tocar menos e de estar mais solto em palco, mas há sempre de haver temas em que vou tocar guitarra. Gosto muito de fazer as duas coisas.
A maior parte dos compositores destes temas já morreu há alguns anos. Sente que ainda há músicos de quem valha a pena fazer versões nos dias de hoje?
Com toda a certeza.
Então porque é que escolheu lançar-se a covers de lendas?
Estou a pensar nisso pela primeira vez… Não defini como critério não gravar artistas novos, foi uma coincidência. [pausa] A PJ Harvey é uma artista recente, não? [risos] Agora, mais a sério, acho que quando se descobre algo novo não tem necessariamente de ser uma canção editada na semana passada, sabes? Pode haver um tipo do Blues dos anos 50 que te muda a vida e te soa fresco, que te revoluciona as ideias…
Também sinto isso, por vezes.
Vês? O objetivo é não deixares de satisfazer a sede de novas coisas. O exercício de resistência, o ato de te negares a render a algo que te faça perder essa sede, de continuares faminto pelas coisas inúteis foi também o que me levou a fazer este disco. A arriscar. Porque em última análise é sempre a fome viva pelas coisas inúteis que nos salva.
Que artistas novos anda a ouvir?
Deixa ver o que tenho aqui [procura no telemóvel]. Olha, Phantom Radio. Mas isto não são putos novos, é o projeto do Mark Lanegan, que já tem uns 50 anos…
Supernovo, portanto…
Ando a ouvir Timber Timbre — que têm um disco fabuloso, o Hot Dreams —; a Etta James, também novíssima e um disco chamado “Don’t Loose This”, que são canções do Pops Staples trabalhadas pelo Jeff Tweedy dos Wilco… O álbum tem esse nome porque foi o que o Pops disse à filha — Mavis Staples — quando lhe entregou as canções. É uma história bonita. [pausa] Vi também um gaiato imberbe no festival da Avenida Da Liberdade [Vodafone Mexefest] que acho que é um excelente exemplo do que por aí se anda a fazer, o Perfume Genius. Gostei muito do gajo. Achei que arrisca, que se atreve e que afronta com primor estético.
Como é que vê, dada a sua herança multicultural, a aproximação dos Estados Unidos ao Irão? [a entrevista foi feita em Abril. À data observava-se um período menos conturbado nas negociações]
Há a questão do levantamento das sanções, mas não sei o que esperar… O acordo só vai ser assinado em Junho e até lá pode acontecer muita coisa. Eu vi as pessoas a celebrar nas ruas e aquilo comoveu-me imenso. Dá para perceber que a população pouco tem que ver com o regime. No sistema iraniano todos os poderes estão controlados pelos Ayatollah… Não consigo perceber sequer quais são as liberdades do Rohani [Presidente do Irão], mas mantenho a esperança. A longo prazo tenho a certeza de que as coisas vão mudar.
Acha que o Irão conseguirá trazer coisas novas ao mundo no dia em que a repressão e controlo do estado cessarem?
Não tenho a menor dúvida. O Irão tem uma população muito jovem; 70% das pessoas tem menos de 35 anos e um nível de literacia ao nível do da Grã-Bretanha. As pessoas não são ignorantes. Apesar dos esforços de soterrar esta cultura milenar por baixo da loucura, acho que não vão conseguir matar o sonho. Mais, a cultura persa trouxe muito do que hoje temos no mundo, foi o berço da civilização… Tenho muita esperança.
Esperança no povo?
Esperança na humanidade, nas pessoas. Temos é de dar às pessoas as condições para serem tudo o que podem ser. Tem de haver amor, empenho, acompanhamento, atenção… Se tu não lhes deres isso, viram-se para a sombra.
E isso é algo que só nós no mundo ocidental percebemos?
Não. De todo. Tu vais falar com as pessoas mais simples em qualquer lado do mundo e elas percebem aquilo que são e o que podem ser. Encontra-se nestes países mais gente que é tudo o que pode ser do que no meio deste turbilhão do mundo ocidental. Agora, quando não há pão, quando há opressão, quando acontecem as coisas que acontecem na Nigéria, Quénia ou no Médio Oriente, as pessoas não podem ser outra coisa. Mas essa é uma injustiça tremenda.
Mudou recentemente para Lisboa. Houve muita coisa nova na sua vida, com essa viagem rumo à capital?
Nem por isso… Os meus dias não são muito interessantes; são todos parecidos e eu gosto que eles sejam assim. Leio, toco guitarra, oiço música… Faço o mesmo que fazia dantes. Sempre adorei Lisboa.
Foi Setúbal, no entanto, que lhe deu essa dimensão terra-a-terra, que o fez confiar nas pessoas?
Não sei… Sinto que sempre confiei e gostei das pessoas, apesar da minha vida implicar quase sempre períodos de monotonia e reclusão… [pausa] Acho que um dia vão olhar para nós como homens das cavernas por andarmos a fazer tantos disparates. Vai haver quem se aperceba disso e nos salve. E por isso é que acredito que um dia possamos vir a ser mais unos, mais ligados, mais próximos. É precisa uma nova ordem. É preciso baralhar e dar de novo. Não podemos continuar assim. Ninguém consegue viver assim.
Há uns tempos, o Mazgani numa conversa com o Chef Kiko e com o Padre Tolentino Mendonça falava de frugalidade. Acha que é isso que falta?
Acho que sim. O ser humano é, acima de tudo, um ser espiritual. E é esta obsessão pelo material que nos está a retirar essa esperança, que está a tirar sentido aos nossos dias. É preciso voltarmo-nos para a esperança, para a espiritualidade, para a frugalidade, a aprender a viver com o essencial. Disso não tenho dúvidas.
Isso implicaria um retrocesso?
Porquê retrocesso se estamos a falar de futuro e de esperança?
Porque foram conquistas deste novo século, que supostamente nos fizeram avançar.
Mas se não estamos, de facto, a avançar com elas, não pode haver retrocesso, percebes?
Temos de largar o carro bom que temos hoje?
Não. O carro bom é muito bom, mas tem de nos servir. Não podemos estar nós ao serviço dele. O progresso é bom: já não precisamos de demorar dias a penar daqui até acolá, e até podemos ir de avião, mas esses avanços têm e devem servir para nos libertar, para, como diz o mestre Agostinho da Silva, nos “dedicarmos ao ócio”, para sermos os “poetas à solta” que nascemos para ser. E é nesse sentido que eu digo que viemos a este mundo para nos cumprir.
No seu caso, vira-se mais para a espiritualidade para abraçar o mundo e ganhar a tal esperança na sociedade?
Sim, para acreditar.
A crença é uma muleta da esperança?
Não. O saber nunca é uma muleta. Eu tenho a certeza e a certeza não é uma muleta.
A certeza não é incompatível com a religião?
Quando há religião tem sempre de haver dúvida, porque se houver religião e certezas tens uma pedra na mão. Estás pronto a acusar. A religião não pode viver de certezas, senão acabas fanático. Quando eu falo na certeza, falo na esperança, falo no que acredito e naquilo de que estou certo; quando falo na religião, tenho obviamente de falar na dúvida. Quem tem uma verdade na mão, tem uma pedra na outra.
Continuemos com as incertezas, então?
Certíssimo. A habitar no enigma. Sempre.
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)