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Embora não conheçamos assim tanto do cinema argentino, chegam-nos por vezes pequenas perólas. Foi o caso de Segredo dos Seus Olhos e Relatos Selvagens. É o caso, talvez mais do ainda do que no passado, deste O Ilustre Cidadão, premiado em Veneza.
A primeira cena é um belo ponto-de-partida para a personagem: Daniel Mantovani ganha o Nobel da Literatura e faz um discurso que é tudo menos politicamente correcto. Alvo de um enorme mediatismo e de inúmeros convites mediáticos, Montovani decide regressar à terra Natal, Salas, uma pequena localidade argentina que serviu de inspiração para as obras do escritor, mas que não visita há anos. “As personagens não conseguem sair e eu não consigo voltar”. E é aí que, entre o microcosmos realista de uma pequena terra e um certo surrealismo fantasmagórico, O Ilustre Cidadão se afirma com uma bela sátira.
O amigo putanheiro, o presidente da câmara fanfarrão, uma jovem endiabrada, um pequeno gang local, o jovem que quer à força homaneagear o pai, o locutor da televisão local… tudo isto são personagens delirantes de um filme que assenta numa palavra: a hipocrisia. A hipocrisia dos habitantes locais, mas sem ilibar o próprio Mantovani, entre os fantasmas do passado, o cinismo e desconforto das pequenas situações e o remorso pontual pela forma como age perante perante uma localidade de que se afastou para não mais voltar.
Sem grandes artifícios estéticos, este filme argentino baseia quase tudo nos diálogos, em cenas de antologia (por exemplo, todo o concurso de pintura é belíssimo) e nos actores. E eles correspondem com distinção, com destaque inevitável para o protagonista Oscar Martinez, vencedor do prémio para melhor actor no último Festival de Cinema de Veneza.
Com um belo final (também ele um poço de ironia), O Ilustre Cidadão mistura um delicioso sentido de humor, um negrume perturbador e uma reflexão em aberto, sem pretensiosismos, sobre os desígnios da criação artística. Condimentos equilibrados num belo filme.