Daredevil, o homem sem medo

por Bruno Ricardo em 13 Abril, 2015

Daredevil não é dos heróis mais populares da Marvel, mas a sua complexidade dá-lhe um interesse como personagem dramático que outros não terão. A linha moral que caminha entre a vilania e o heroísmo é constantemente desafiada nos comics e o facto de ser um católico bem crente dá-lhe uma complexidade das escolhas, motivações e dúvidas que o tornam um dos poucos personagens de comics para as quaisDostoievski não se importaria de contribuir com umas linhas. As comparações com Batman são sempre inevitáveis: ambos na sombra e na luz, ambos self-made heroes, ambos dedicados à causa de protegerem a cidade onde nasceram de vilões mais humanos do que super. A diferença maior é nos recursos: Daredevil não tem super carros, super gadgets ou uma caverna cheia de computadores. Matt Murdock, o seu alter-ego, é advogado durante o dia, e um problema na infância deu-lhe a cegueira e uma amplitude de sensos que quase lhe oferece um radar na cabeça. O seu único poder verdadeiramente super parece ser o de encaixar pancada com estoicismo.

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Se o restante Universo Marvel se centra em gente que não é humana, nesta série acontece o contrário: ao conseguir novamente os direitos da personagem, a Casa das Ideias ancorou bem o mundo de Daredevil na realidade, numa Nova Iorque actual mas com visual dos anos 70, uma década de crime, corrupção e medo em larga escala na cidade que nunca dorme; estes 13 episódios, com a chancela conjunta da Netflix e da Marvel, são tudo o que se pode esperar de entretenimento adulto, bem filmado e acima de tudo com a noção de que se pode ser sério com banda-desenhada. Opondo Murdock e colegas (Foggy Nelson, Karen Page e mais tarde, o repórter Ben Urich) contra um conglomerado de senhores do crime liderados por Wilson Fisk (nunca tratado pelo nome de Kingpin), Daredevil trata de tudo o que torna este personagem desafiante: a culpa e martírio católicos, o espírito de protector mas simultaneamente vigilante, o primado da lei sobre um homem que se julga juiz, júri e carrasco e a desesperança de ver os mais pequenos indefesos perante quem tem dinheiro. O sub-texto anti-capitalista da empreitada é também anti-heróico, quando no primeiro episódio um dos vilões diz memoravelmente “Eu gosto de super-heróis: por onde eles passam, trazem destruição e isso gera a oportunidade de negócio”.  A Hell’s Kitchen nova-iorquina é o palco e motivação de todo este drama; durante toda a série, todos os personagens principais terão oportunidade de saberem quantas regras estão dispostos a dobrar ou quebrar para salvarem-na, sempre na sua perspectiva do que são boas intenções. Bem filmada e escrita de uma forma quase de folhetim BD, com as peças a amontoarem, é um drama criminal e não uma aventura kitsch. Apesar de o dinheiro não ter sido farto para fazê-la, é bem aplicada e as limitações de orçamento bem contornadas.

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Destacam-se Charlie Cox, como o Matt Murdock interpretado agora por um actor a sério, e o seu adversário Vincent D’Onofrio, naquele tipo de papéis maiores do que a vida (aqui quase literalmente), a conter raiva, a ter discursos daqueles que apetece ouvir e numa cena memorável, a explicar porque é que a realidade é a coisa da qual fugimos, mesmo na era da informação. Numa paisagem televisiva povoada pela comédia involuntária que é “Gotham”, o escapismo desmiolado de “Flash” e “Green Arrow” e ainda o cimento entre filmes que é “Agents of SHIELD”, é bom saber que ao contrário da DC, a Marvel tem sabido dar oportunidade a coisas diferentes e modelos que se encaixam perfeitamente nos temas e mundos dos seus personagens. Daredevil recomenda-se para quem gosta de boa televisão, bom entretenimento e intrigas de poder. Querer reduzir a série a spandex vermelho é idiota; e quando a virem, vão perceber que o é, mais do que de uma maneira.


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Bruno Ricardo

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