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Em homenagem ao actor Nuno Melo, que nos deixou no passado dia 9 de Junho de 2015, recordamos um dos trabalhos mais icónicos da sua carreira: O Barão. A abertura refere o remake de um filme proibido pela ditadura fascista. Valerie Lewton, uma produtora estrangeira refugiada em Portugal nos anos 40, teria casado com um actor português e realizado um filme maldito que seria censurado pelo regime de Salazar. Depois do exílio da equipa, os actores teriam sido enviados para o campo de concentração do Tarrafal, onde viriam a falecer. O material, descoberto após o 25 de Abril, teria sido então recuperado no cineclube do Barreiro…
Adaptado por Edgar Pêra e Luísa Costa Gomes a partir do conto homónimo de Branquinho da Fonseca, O Barão conta a história de um tirano (Nuno Melo, distinguido por este papel pela SPA) que domina uma pequena aldeia no interior do país – um lugar povoado por ruídos e sombras, onde parece ser sempre de noite. Um inspector escolar (Marcos Barbosa) desloca-se ao local a pretexto de investigar o caso de uma professora problemática (Marina Albuquerque), acabando por se tornar seu hóspede e quase prisioneiro – circunstâncias que lembram a visita de Jonathan Harker à Transilvânia no livro de Bram Stoker. Como Drácula, o barão recebe o seu convidado dando-lhe de jantar – mas não se alimenta – numa sala onde existe um quadro que o representa e denuncia uma particular passagem do tempo. Adivinha-lhe os medos e pensamentos, rosna como se pudesse transformar-se num animal, a sua voz confunde-se com os uivos de animais nocturnos que rodeiam o seu “castelo”. As semelhanças com o Drácula de Bram Stoker ou o Nosferatu de Murnau não se ficam por aqui. O barão é atormentado por um amor incumprido, no caso, o amor à elegante e também sinistra Idalina (Leonor Keil), uma criada que deambula pelo castelo como um fantasma. O seu delírio de poder é em parte reacção ao ressentimento provocado por esse amor frustrado, mas transforma-o num autocrata embriagado da sua megalomania.
Pelo tema, pela extravagância na forma (onde consegue ser altamente original mantendo uma aura de objecto vintage), pelo preto-e-branco de alto contraste ou pela utilização peculiar da legendagem (as legendas fazem parte da composição cénica, movendo-se pelo ecrã), O Barão é uma experiência cinematográfica rara no panorama português. É verdade que a montagem e o recurso exagerado aos fumos e à distorção/sobreposição das imagens se tornam, a espaços, algo cansativos. Mas fotografia de Luís Branquinho (neto do autor do conto) é exímia na concepção daquela atmosfera espectral e no tratamento da personagem do título. Os permanentes jogos de iluminação vão transmutando a figura do barão ao longo do filme, revelando-o ora vulnerável, ora implacável e enlouquecido, transformando Nuno Melo num Drácula lusitano absolutamente memorável. À alusão vampiresca acrescentam-se elementos bem portugueses: a referência ao despotismo decadente em pleno Estado Novo, aos “amigos de Coimbra” ou a performance inesperada de uma tuna (interpretada pelos Vozes da Rádio), um dos momentos mais inusitados do filme.
Estamos perante um dos poucos exemplares de um trabalho português no género do terror – embora esta classificação não deixe de ser um equívoco, ou pelo menos um reducionismo. Na verdade, O Barão é muito mais do que isso: Trata-se de uma fantasia gótica neo noir (temos o submundo, a luz e a sombra, o investigador e o investigado, a mulher fatal) que homenageia uma personagem literária intemporal, o expressionismo alemão no qual a estética noir se inspira e o cinema americano de terror de classe B (em particular, os filmes de Ed Wood e seus caricatos “efeitos especiais”). Com poucos sustos e uma larga dose de humor ácido, estamos perante uma sátira política e um filme-tributo que assume as suas óbvias referências e fontes de inspiração – ver um filme assim é um deleite para qualquer cinéfilo. Nuno Melo, o “actor fora da norma”, consegue aqui o momento dourado da sua carreira, num papel que tira o máximo partido do seu semblante estranho, da sua articulação vocal particular, do seu carisma, do seu porte de vagabundo aristocrata e de uma teatralidade que lhe era tão natural. Se em tempos idos ele foi Caniço, nos últimos anos ele era o Barão. Será difícil esquecer as palavras que nos deixou no grito dessa personagem, que agora lhe assentam como nunca: “Aqui quem manda sou eu”.