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Considere-se o conflito quotidiano a que nos submetemos a todo o momento: o choque violento entre a nossa individualidade, e tudo o que o mundo lhe atira indiscriminadamente. O Homem do presente século viu e aceitou que se lhe impusesse um ritmo frenético de atenção e disponibilidade, a única forma possível de acompanhar o incessante cavalgar da informação global. O smartphone é o necessário portal (uma extraordinária muleta!) que descodifica tudo o que em redor se manifesta: o tweet é a nova microexpressão; a selfie autoafirma; a imagem em movimento, tenha cinco segundos ou quatro minutos, subjuga o olhar e a atenção a seu bel-prazer, e torna-nos incapacitados. Estamos reféns deste paradigma. O que resta do humano após o assalto do digital?
O novo trabalho dos Ermo, Lo-Fi Moda, não é necessariamente uma resposta, mas insere-se certamente num espaço que se abre entre nós e a máquina, seja esse fruto de um empurrão ou de um abraço – de repulsa, ou de aceitação. Diz-nos a sua press release que o disco “retrata o comportamento humano, engolido pelo mundo digital”, ficando em aberto a mesmíssima questão. Lembrando Vem Por Aqui (2013), o registo que nos colocou em reflexão sobre Portugal e fruto directo de uma vida à parte da nação centralizada, percebemos-lhe um sentimento colectivo; Amor Vezes Quatro (2015) cantou sobre a multiplicidade do amor, entreabrindo assim uma porta para a experiência individual; agora, em Lo-Fi Moda, parece termos entrado definitivamente numa subjectividade ilimitada: o âmago de um ser pensante, e contemporâneo.
“Não achamos que seja um afunilar das nossas preocupações, porque parece bué isso: começámos num colectivo e estamos num prisma cada vez mais pessoal [no Lo-Fi Moda]”. Ouço os Ermo através do Skype, acabados de chegar à Madeira, onde actuariam – “e por esse mesmo motivo acreditamos que se possa aplicar ainda um maior número de pessoas.” Independentemente do destino último do seu caminho, em direcção a uma maior ou menor abrangência, o trajecto tomou contornos mais ininteligíveis e abstractos. “Acho que agora conseguimos fazer realmente músicas que conseguem suscitar diversos tipos de interpretação. […] quando entras em territórios mais pessoais e quando começas a falar em termos mais subjectivos, acabas por encontrar algo que também é colectivo na maneira como pode ser interpretado.”
Este novo Lo-Fi Moda, editado pela sublabel NorteSul sob a alçada da Valentim de Carvalho, promete um choque a vários níveis com quem os segue desde o repto do último disco. ‘Vem nadar ao mar que enterra’, faixa que o abre, oferece-nos uma voz mergulhada em auto-tune, um instrumental abrasivo, espasmódico e desconcertante, e palavras que são, ainda assim, um convite para “molhar os pés na areia”. O confronto de dois elementos distintos, numa base simultaneamente profunda e movediça, e a impressão de nunca ser terra firme onde assentar os pés; é como uma preparação para o que aí vem. As paisagens de índole nomádica, a instrumentação esparsa que permitia terreno privilegiado à voz – já aqui não estão. O conforto é um privilégio do qual abdicaram definitivamente.
“A cena da temática não foi definida; foi algo que veio ao nosso encontro. Algo que queríamos dizer, que estávamos a sentir. Foi uma fase de transição também nas nossas vidas, e isso reflecte-se também no disco.”
Os Ermo habituaram-nos, noutros registos, a participar numa espécie de dissidência contra um mal comum, e nós do lado onde nos era fácil perpetrar a identificação. Mas desta vez a voz de Lo-Fi Moda é mais confrontacional e deixa pouca margem para a empatia. “É um disco com uma personagem redonda. São sempre as mesmas pessoas, e embora não digam sempre as mesmas cenas, é a mesma forma de falar das coisas”. O seu sujeito, embora polifónico e distinto de música para música, tem uma génese comum; é uma voz trespassada pela desconfiança e cinismo, a fazer lembrar o homem das Notas do Subterrâneo de Dostoiévski, em vertiginoso descontrolo emocional; mantém-se a toada verrinosa, mas partindo de um sujeito que já é ele próprio condicionado pelo que o atormenta. “Pusemos mais de nós no disco”, salientam, em relação a trabalhos anteriores, e com um método de trabalho diferente. A tour ao Brasil “foi um momento em que reparas que estiveste de olhos fechados nos últimos anos, e não estás no sítio onde querias estar”; um choque frontal com o que os Ermo podiam dar, à distância apenas de uma injecção de profissionalismo. Talvez, especulamos, tenha sido essa a grande diferença; um método de trabalho que lhes invadiu o quotidiano e lhes permitiu captar o sentimento intrínseco da sua experiência imediata. Chegaram onde haviam apenas tocado a superfície em tentativas anteriores.
“Simplesmente, agora embrenhámo-nos mais no que estávamos a fazer, por isso talvez soe tudo mais junto”. Dificilmente encontraremos, como foi seu objectivo, alguma referência explícita a uma influência do mundo digital nas suas letras, mas talvez seja possível fazê-lo na arquitectura sonora deste disco – talvez seja a altura na sua carreira em que a música e a lírica melhor se complementaram, e esta era, como dizem, uma “das metas que tínhamos para este segundo disco: ter sons cada vez mais complexos; crescer em termos líricos, também, para que deixasse de ser tudo tão óbvio. Fazer com que as músicas não fossem de sentido único”. O extenso uso do auto-tune, presente em virtualmente todas as músicas, aproxima o homem da máquina e desumaniza-o, e a electrónica fragmentada, dissonante, segue a toada preconizada por Holly Herndon, Oneohtrix Point Never, Arca – e até numa noção mais conceptual, partilham terreno com o colectivo da PC Music e a génese do vaporwave – e coloca-os em diálogo directo com os pensam o confronto entre estes dois mundos; é algo que está a acontecer agora mesmo, na música contemporânea.
Os Ermo estão absolutamente sintonizados com o que acontece na cena internacional, o que é interessante quando contrastado com o início da sua carreira. A música pop – por quem admitem ser permeados embora “não vamos apontar para lá, nem vamos dizer que não vamos mergulhar lá – mas é um lá, e é possível lá estar” – é uma perniciosa intromissão nas nossas vidas, e cada vez de mais nebulosa definição: somos obrigados a considerar nela nomes como Drake e grande falange do hip-hop, a infindável torrente de trap supérfluo, e quase tudo o que lide com a impressão egoísta do ser humano. A música e a sua indústria são agora regidas por outras influências, e tendências pouco ortodoxas. Lo-Fi Moda reclama em justo direito ser incluído nesse cânone incerto, mesmo que a partir de um lugar periférico.
“Tentar deitar algo cá para fora que fale profundamente dum lugar que seja nosso. Talvez por isso seja mais difícil compreender uma linha geral que atravesse todas as músicas. Veio directo de experiências pessoais e daquilo que queríamos dizer, sem rodeios. É menos literatura, e mais literal; não dissidência política, mas derrame pessoal, um conjunto de insatisfações.”
Vem Por Aqui assumiu-se como uma condensação e progressão lógica do que haviam feito desde o seu início até então; e Amor Vezes Quatro foi um exercício que nos devia ter chegado bem mais cedo, mas que se complicou em vários impasses de edição. Seguiu-se um interregno criativo desde 2015, no qual um disco inteiro foi para o lixo, e uma tour recente ao Brasil. A renúncia ao passado, tanto a nível musical como temático, faz parte do processo de constante reinvenção. “Um dos princípios que temos desde o início e que nos esforçamos por manter é que cada trabalho tem que ser diferente, e no próximo disco, que não existe ainda, vai ser uma abordagem diferente de certeza. Dentro do que é o Lo-Fi Moda, já demos as nove canções que tínhamos a dar, com a formula explícita de todas as maneiras possíveis, e por isso vamos tentar uma cena nova e diferente no próximo trabalho”.
Depois de um primeiro disco que foi, ele próprio, a afirmação de uma enorme capacidade, tudo o que adveio e advirá de seguida será sempre a afirmação de uma outra coisa qualquer; mas nunca a afirmação do projecto, que se consumou há muito. Até que nos troquem as voltas mais uma vez, ficamos com Lo-Fi Moda, esta espécie de espelho abstracto que reflecte algo informado pela nossa individualidade. E o que vemos não é bonito, mas, enfim!, é o que somos.
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)