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Os Hüsker Dü foram uma das melhores bandas da História da música popular – os últimos vinte anos confirmam o facto. Qualquer trio de música alternativa com guitarras que toque a certa cadência e a certo volume é tributário do que fizeram entre 1981 e 1987. Depois de Bob Dylan por lá ter começado a carreira e a par dos igualmente míticos Replacements e Prince, os Hüsker Dü ajudaram a colocar as Cidades Gémeas no mapa musical – que os EUA não eram só as costas Este e Oeste.
Grant Hart era o seu baterista de pés descalços, designer de capas de álbuns e co-compositor, um absoluto mestre da fusão entre sensibilidades pop de cinquentas e sessentas com a raiva incontida do punk e do hardcore, fusão essa que entraria no léxico e na genética da música alternativa dos anos oitenta para a frente. Não se ficou por aí e continuou, a solo e com outras bandas, a trilhar um caminho único – com domínio de escrita e instrumentação e sem introversão criativa.
Após uma primeira fase de violência hardcore, cuja velocidade ultrapassou por milhas a dos conterrâneos de género, a viragem dos Hüsker Dü para o noise pop tem o desenho e estrutura de Grant Hart. O ponto de equilíbrio entre a distorção da réplica Ibanez de Flying V de Bob Mould e a melodia de Hart colocou a banda nos píncaros da qualidade e tornou-a num modelo a seguir, numa das mais influentes bandas de sempre.
Se uns Mission of Burma já se aventuravam a tocar um punk fora da caixa, os Hüsker Dü atravessaram, ao longo de quase uma década, o punk, o hardcore e criaram a sua própria e inconfundível sonoridade. Segue, em registo de exame, um punhado de canções que atestam a genialidade e a relevância de Grant Hart:
Canção levantada de uma notícia de jornal sobre o sequestro, violação e homicídio de Diane Edwards, “Diane” foge à regra dos Hüskers da época – um primeiro esboço da sensibilidade melódica de Hart a fugir à velocidade quase escabrosa das composições da banda da época. Um convite para uma boleia torna-se num convite para uma festa e o corolário é a tragédia aludida na letra. A subida de volume da guitarra na mistura a revelar duas coisas: o horror dos actos relatados e uma previsão do que seriam os anos seguintes da banda – incessantes evolução e tensão.
A alienação da personagem retratada em Zen Arcade, o álbum duplo (pela SST e em competição com os comparsas Minutemen) que consagrou a banda e estabeleceu de vez a sua sonoridade de punk melódico e distorcido, assiste aqui a um dos pontos maiores em todo o disco. As experiências de Hart com drogas pesadas não terão sido alheias na composição da letra; o pânico da overdose, a transformação de pessoa com rubor na cara em cadáver de cor nada natural e, enfim, o nosso jovem fugitivo novamente sozinho num mundo aterrador. O detalhe das notas de piano no arranque e os falsetes de Hart no refrão só reforçam o melodrama e o desespero, a sua bateria uma marcha em acelerado em direcção ao vazio – físico e existencial.
Dentro da ambição e monumentalidade de Zen Arcade, os Hüskers não se ficaram apenas pela agressividade animalesca ou pelo ataque dual distorção-melodia. Em “Never…”, Hart saca da guitarra acústica e prossegue com um dos temas-chave do álbum: o coração partido. A desilusão jovem com o amor leva a uma simples e objectiva réplica contra este: quem não gosta de nós, quem não nos compreende a maneira de ser, quem é uma parede de incompreensão em relação ao nosso humor e sonhos não merece o nosso latim. Até poderíamos dar uma ajuda e ensinar os ignorantes, mas tal seria uma perda de tempo. Lamento raivoso que até fez lembrar outro especialista das redondezas na questão: Paul Westerberg, dos Replacements.
Talvez a melhor combinação da raiva e distorção de Bob Mould com a sensibilidade pop e melódica tout court de Grant Hart (e o cimento sónico de Greg Norton), “The Girl Who Lives on Heaven Hill” é um monumento. Hino à fantasia amorosa (platónica ou não) e contra a solidão? Pequena homenagem a uma amiga doente de Hart? Não sabemos, mas certo é que é uma ode em crescendo raivoso, com emoções à flor do éter – Hart sendo Mould. Mais do que uma magistral malha, é uma ode.
Em 1985, ninguém parou os Hüskers: dois álbuns clássicos (pela SST de Greg Ginn dos Black Flag) e digressões onde continuaram a ser uma das melhores bandas ao vivo da época. Hart desacelera a velocidade típica da banda para um registo romance de cordel que modernizou e bebeu da tradição bubblegum e r&b norte-americana – Kingsmen, Archies, Ronettes, Crystals, entre outros. Se New Day Rising é fúria, Flip Your Wig é melodia (e mel, como aqui se ouve em “Green Eyes”). Se os Pogues cantaram, no mesmo ano, sobre olhos castanhos, do outro lado do Atlântico cantou-se sobre olhos verdes.
Ponto alto num álbum menor (Candy Apple Grey; Warner Bros., 1986) dentro da discografia da banda, “Don’t Want…” encontra Hart ou o seu protagonista definitivamente solto das grilhetas do amor (ou da paixão obsessiva) e após a recaída amorosa de “Sorry Somehow”. Apogeu da fase noise pop, a sua quebra com muralha sónica na melhor tradição de Bob Mould encarreira a canção e a obsessão para a sua conclusão: o alvo do afecto já não é bem-vindo/a (nem os amigos), as noites já não lhe pertencem, não voltará a tratar ninguém como lixo, mas se quiser pode deixar mensagem. Quem dera à nossa Ágata ter expulsado deste jeito alguém da sua vida.
Na ressaca do fim dos Husker Du, temos Grant Hart a editar um primeiro EP reminiscente dos “seus” anos sessenta, com o jangle pop então em ascensão igualmente no ADN da canção. Canção simples, “2541” é atinente a um dos temas queridos de Hart: os sítios, suas pessoas e humores; as janelas daquele número viram entrar o sol e a vida de Grant Hart. Montra das capacidades vocais deste, é mais um refrão orelhudo e instrumentalmente uma demonstração do que lhe ia na alma e ouvido em 1988. Versão de EP, seria regravada e reeditada para Intolerance, LP de 1989 – ambos pela SST.
Pelo que já ouvimos, a obra de Hart foi também uma obra sobre lugares – reais e fictícios. “Evergreen Memorial Drive”, dos Nova Mob, power trio formado por Hart em 1989, é uma incursão por sonoridades típicas dos anos noventa – uma guitarra que pisca o olho a jovens turcos de então como os Smashing Pumpkins ou os Pavement e aos Sugar de Bob Mould (aqui mais um pirete, pronto), mas sempre com a melodia ao comando. Um solo pujante, um refrão repetitivo em quase-mantra e um ouvido continuamente atento aos tempos a dar-nos mais uma canção de topo da carreira de Hart.
A despedida de David Bowie, Black Star, foi um disco de solene beleza e fragilidade. Contudo, Grant Hart despediu-se (atempadamente, note-se) em The Argument num registo em tudo semelhante: a saúde frágil em evidência, a incursão pela art pop (Beach Hart?) e seus sintetizadores inebriantes são um prenúncio de que não é apenas a idade a amolecer o grande músico. A catástrofe que foi o incêndio na sua casa e consequente perda da sua história material e o cruel pragmatismo de uma saúde menos que boa só tornam “I Will Never…” no fúnebre momento de encerramento de uma carreira que ultrapassou as três décadas.
Grant Hart tocou a sua música até estar à beira da morte; um cadáver adiado (não o somos todos?) que foi até onde conseguiu, deixando um legado intocável – em qualidade e arrojo, sem limitações à criação e influente até os ouvidos perderem de vista (facto que displicentemente diz desconhecer). A obra que ajudou a criar é sinónimo da evolução do punk e ajudou a moldar as gerações seguintes da música popular – não havia que ter vergonha de ser melódico no meio do ruído, não havia lugar à timidez aquando da escrita das letras. Uns tais de Dinosaur Jr., Pixies, Nirvana, Mudhoney, Fucked Up, The Men e Metz (entre tantos, tantos outros) que o digam.
Sobreviveu como pôde ao vício da heroína, um susto com a SIDA, ao fim das suas bandas, a tensões pessoais e artísticas e a um incêndio que lhe ceifou o legado pessoal, mas foi finalmente vencido pela doença traiçoeira. Trinta anos de relações irregulares e tensas (com muita língua viperina pelo meio) com Mould e Norton que acalmaram ao ponto de a reedição da primeira parte da carreira da banda estar iminente (Hart só quis que saísse ainda no seu tempo de vida); muito ficou por fazer, contudo.
Mas, chavões à parte, se a falta de noção e de curiosidade intelectual não vencerem, a sua música viverá. Ide ouvir a sua obra, que assim perceberão boa parte dos cartazes dos festivais e concertos a que foram, vão e irão.
Melhor herança não pode um músico deixar.