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A Fábrica de Nada
Título Português: A Fábrica de Nada | Ano: 2017 | Duração: 177m | Género: Drama
País: Portugal | Realizador: Pedro Pinho | Elenco: Carla Galvão, José Smith Vargas, Njamy Sebastião, Joaquim Bichana Martins, Daniele Incalcaterra, Rui Ruivo, Hermínio Amaro, António Santos, Américo Silva

A administração de uma fábrica à beira da insolvência tenta convencer um punhado de operários inconformados a aceitar um acordo para dispersar. Poderia resumir-se assim o argumento do fenómeno A Fábrica de Nada, o filme que arrebatou a crítica internacional e venceu o prémio FIPRESCI no último festival de Cannes. Esta história, tecida a partir de uma ideia original de Jorge Silva Melo, inspira-se na experiência de autogestão da Fateleva (que de 1975 a 2016 geriu a fábrica Otis) e toma até de empréstimo alguns dos seus protagonistas. O grupo de trabalhadores apanhado de surpresa nas malhas do sistema toma a decisão radical de se manter nos seus postos de trabalho durante o horário de expediente, na expectativa, ou na esperança, de pressionar os patrões a recuar na decisão. Recusam abandonar as suas tarefas, recusam resignar-se, recusam abdicar do direito de trabalhar ali. No entanto, esta teimosia legítima camufla fragilidades enormes, a falta de horizontes e de alternativas e a ausência de preparação para responder às demandas de uma realidade nova: a aceitação forçada da sua posição pré-determinada na lógica capitalista de uma divisão social bipartida (proprietários dos meios de produção vs. proletários). Quando, externamente, lhes é imposta a ideia revolucionária de se autogovernarem, o grupo desorienta-se, apavorado, forçado a conformar-se – desta feita com uma outra ideia: a urgência de uma solução concertada. São os filhos do sistema, com um potencial relativo de mudança e agora uma oportunidade para escolher um rumo diferente.

São diversas as obras recentes que abordam a crise económica (chamam-lhes até “cinema da crise”, são delas exemplo São Jorge de Marco Martins, ou a trilogia As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes), sendo curioso verificar que o denominador comum de todas elas parece paradoxalmente esbater-se nas discussões políticas e filosóficas sobre estas matérias, quando deveria estar no seu centro: o impacto da observação dos microcosmos humanos, das vidas reais e das implicações que se vão somando à medida que a lente se afasta do individual para o colectivo. Este filme descreve o desmantelamento de uma unidade de produção – uma fábrica que de repente nada produz – mas discute ainda um desmantelamento maior, o das vivências pessoais dos operários que a povoam. O capitalismo mata o amor, mas também a tranquilidade, a autoestima, a alegria, a relação com o Outro. Como em diversos textos é dito, A Fábrica de Nada é, na verdade, a Fábrica de Tudo, porque discute o lugar que o inalienável direito ao trabalho, ou a ausência dele, ocupa na vida de todos – não apenas enquanto meio de subsistência mas, e sobretudo, enquanto medida do valor pessoal e de atribuição de sentido existencial. O grupo de argumentistas (Pedro Pinho, Luísa Homem, Leonor Noivo, Tiago Hespanha) levou a cabo a tarefa complicada da escrita, a oito mãos, de um conto de resistência que é também um retrato de uma realidade global e incontornável – a crise económica, a iminência do desemprego, a representação de valor do dinheiro, as pressões sociais, familiares e as inerentes ao movimento associativo, o fraseado paradigmático dos patrões nas empresas (de precisão impressionante) que no discurso convertem drama em oportunidade, os nossos mecanismos compensatórios de fuga e de alienação. Discutem-se os princípios (e os fins) do capitalismo, mas também os grandes paradoxos do progresso e a substituição do trabalho humano, motor primordial do sistema capitalista, pela máquina e pelo avanço desenfreado e cego da inovação tecnológica.

A Terratreme Filmes e o seu grupo de criadores, experimentados no género documental, enveredam por um território que poderíamos situar na docuficção ou docudrama, fazendo uso de um olhar quasi-passivo, que mais do que resolver dilemas ou encontrar resposta para as questões que levanta, se detém na observação de um lugar abstracto no tempo e no espaço. Esta opção é um dispositivo poderoso, porque apresenta mais perguntas do que soluções e, por isso, mais incomoda do que apazigua. Mas o filme vai mais longe: rompe com as regras de género cinematográfico, submetendo a sua temática a um tratamento trágico-cómico, a dado momento quase surrealista, que nos acorda do torpor da contemplação paternalista da angústia alheia e a seguir nos reposiciona. Estamos perante um objecto híbrido que assenta num realismo figurativo, simbólico mas absolutamente contundente. Quando um filme português sobre uma realidade que tão imediata produz tal ressonância no espectador anónimo e nos circuitos comerciais e críticos, estaremos talvez perante o reconhecimento de um problema maior que o dos trabalhadores daquela fábrica da Póvoa de Santa Iria, complexo e transverso a muitos públicos, diverso e globalmente inquietante – que por isso reclama uma reflexão individual, depois grupal, depois social, por fim política. O poder da arte é esse, a possibilidade de nos tocar, de tomar como nossa uma realidade projectada e nos unir, como aos operários do Nada, na reinvenção de um caminho que a todos sirva.


sobre o autor

Edite Queiroz

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