Reportagem


Swans + Baby Dee

Fecho de um capítulo com ouvidos postos no próximo

Lisboa Ao Vivo

09/10/2017


Na música popular, a mitologia e hagiografia são fundamentais para a construção da memória colectiva e auditiva – pese o chavão, em especial para quem nunca viu ao vivo determinado artista ou banda. A novidade da reunião desaba demasiadas vezes em novas tensões artísticas (e financeiras…) ou por conta das agruras da idade dos membros e da obra – veja-se o falhanço dos Pixies dos últimos anos. Safam-se uns Mission of Burma, cujo regresso já ultrapassou cronologicamente a fase original da banda ou os Swans, cuja formação actual é a mais estável da sua história.

A 8 (Hard Club) e 9 de Outubro (Lisboa ao Vivo) regressaram a Portugal na digressão de despedida desta mesma fase – novamente, Michael Gira a planear o funeral e a partilhá-lo com todos. Ambiente fúnebre? Nem por isso, antes de prazerosa ansiedade, suficiente para encher o porão de um navio ali ao lado, no porto.

Coube a Baby Dee abrir a noite, com solenidade de cabaret (e de porão de navio). Em décadas de carreira e várias colaborações de monta, viu-se acompanhada pelo sobrinho na guitarra acústica; a espaços, lembrou Antony (com quem colaborou), puxando pelo acordeão como uma velha mestre de contos e de canções; falou de violência real e de violência figurada, na sua voz e trejeitos únicos. Destaque para Half a Chance, Baby Dee encarnando Piaf ali no meio do ex-declínio industrial da capital.

Baby Dee

Assim se passou perto de uma hora, pela montanha russa emocional e vocal de Baby Dee; o Lisboa Ao Vivo transformado em sala de estar de pop barroca, cantando muitos anos de melodrama (não só na música, mas também em circos e no abate de árvores), mas também de esperança, numa carreira sui generis que tardiamente se formalizou em disco, à semelhança do saudoso Charles Bradley. Mas era já hora de Michael Gira, Norman Westberg, Phil Puleo, Christoph Hahn, Christopher Pravdica e Paul Wallfisch subirem ao palco – este último em substituição do mítico percussionista Thor Harris, peça-chave do renascimento da banda.

Lá atrás, o material dos Swans assemelhava-se mais a uma máquina devastadora do que a meros instrumentos musicais. Pelas 21h31 começava The Knot a invadir a sala, autêntico nó górdio num crescendo avassalador cuja duração é a de um concerto propriamente dito. Acorde que puxa acorde e a fúria começa a sentir-se. Um autêntico cisne de composição: a beleza das quebras com a agressividade dos crescendos e das paredes de ruído.

Nesta despedida da actual encarnação da banda, a incursão pela ambient mais vigorosa torna-se evidente: conjuga-se a violência do volume com a contemplação típica de quem já muito viu e que continua sem se importar com fronteiras. Gira mimetiza as ondas de um hipotético mar sonoro, turbulento e negro, que nos envolve totalmente.

Swans

Michael Gira é agora um elder statesman, um catedrático da música experimental (ou lá o que quiserem chamar à música dos Swans) que entoa os cânticos daquilo a que se pode chamar as actuais letras dos Swans como se fossem proclamações fúnebres – ou interrogações existenciais com o volume no 11, à moda dos Spinal Tap. Os dois últimos trabalhos, The Glowing Man (estúdio) e Deliquescence (ao vivo), desta era da banda a isso convidam: canções ainda maiores, contemplativas, repetitivas até ficar esculpido no espírito o vendaval sónico perfeitamente adaptado ao ocorrido em palco.

Por falar em vendaval, se no Porto houve chatices com o som, em Lisboa foi o ar condicionado a levar Gira à irascibilidade (sdds ZDB em 2012): ou era desligado ou não haveria voz que aguentasse.

Mas não se fica apenas pelas entoações sacerdotais (ou de neo-beatnik que tem a agressividade por mantra): continua a comandar a banda como se de um maestro do negrume da alma se tratasse. De crescendo a crescendo, de descida abrupta a descida abrupta, Michael Gira nunca deixou de estar na plenitude, tornando-se num caso de estudo em matéria de independência artística na sua Young God Records. Comanda em estúdio e em palco, não procurando nos livros e convenções a fórmula para destruir o mundo, antes vagueando livremente, parafraseando Debord.

O alinhamento reflecte os últimos dois anos da banda, de arranjos abstractos do período pós-The Seer/To Be Kind, para nós o melhor período dos Swans renascidos – que magnífico concerto no Amplifest, em 2014. Os Swans de 2017 não são os que visitaram a Aula Magna em 2011, nem sequer os do Amplifest em 2014 e muito menos os de 1982-1997 – e ainda bem, mas com muitas saudades do grande Thor Harris, personagem em si mesma e de texturas que marcaram a sonoridade da banda-fénix. Os teclados de Paul Wallfisch pintalgam que nem estrelas-cadentes estes Swans e dão um outro peso, uma espécie de escada rolante melódica e retorcida de tensão na versão ao vivo de Screen Shot, agora a faixa mais antiga (e mais curta) do alinhamento.

Swans

Se faltou berreiro evocativo de Lady Gaga numa The Apostate, a última das vénias trouxe Beyoncé à colação, em típico humor absurdo de Gira. Na cidade de Pessoa, tivemos em nós todos os sons dos Swans dos últimos anos, em quase três horas de algum do maior sensacionismo experimental que se pode por aí ver em sala fechada.

Memorável conclusão para uma banda magistral, com a comunidade reunida com o Mestre para o recuerdo no final. Certo é que já bate a ansiedade para se saber o que aí virá nos “novos” Swans. Se é para acordeões, caro Michael Gira, e que tal trazer o Quim Barreiros para uma colaboraçãozita? Tem o selo de qualidade José Afonso, quer dizer.

Foram sete excepcionais anos, à razão de uma edição por ano (e cerca de seis passagens por Portugal), nos quais os regressados Swans acrescentaram algo à paisagem da música dita alternativa, muitas vezes mostrando o que é ser artisticamente independente e exemplar ao vivo. Mal podemos esperar pela nova ressurreição dos Swans, seja ela qual e quando for.

Sempre, sempre provocando o respeito e dominando a lembrança, como diria Agostinho da Silva ou, fazendo jus ao nome, oscilando entre a beleza e a violência – que nem cisnes.

Requiem, ainda que os Swans sejam daqueles que, mesmo se despedindo, nunca morrerão.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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