Entrevista


peixe:avião

Os próprios temas, pela sua natureza, levam a que a vocalização seja menos convencional porque não há praticamente canções.


© Liliana Mendes e Duarte Costa

Os peixe:avião são um fenómeno da música portuguesa. Nasceram em Braga há quase uma década – mais especificamente em 2007 – e rapidamente se tornaram um importante nome do acervo cultural nacional. Neste 2016 lançaram o seu “Peso Morto”, o quarto longa duração, três anos depois do disco homónimo.

O quinteto maravilha fez-se representar por Luís Fernandes numa breve conversa sobre o novo trabalho e a carreira da banda, num encontro no gnration – o espaço bracarense que está a mudar o rosto cultural da região norte, e no qual o Luís é programador.

Ouvindo peixe:avião neste novo registo “Peso Morto” destaca-se a transfiguração da voz de Ronaldo integrando-se no espectro instrumental das composições. A conversa com o Luís começou por uma troca de impressões sobre isto, se esta metamorfose era intencional.

Luís Fernandes (LF) – É intencional, obviamente. Está ligado à forma como nós montamos as músicas, ao nível da sua estrutura e da forma, que leva a que haja mais momentos em que não há voz, ou seja, menos densidade de voz ao longo do álbum todo. Mas, na verdade, a importância em si dada à voz continua a ser a mesma. Às vezes esse tipo de percepção decorre mais de coisas técnicas como a mistura e como a estrutura dos temas, e neste caso há muito menos letra que noutros discos. Agora, não é aquela questão de querermos ostracizar a voz ou querer torná-la algo instrumental. Os próprios temas, pela sua natureza, levam a que a vocalização seja menos convencional porque não há praticamente canções, há talvez uma ou duas que se possam encaixar mais nesse formato e daí a voz se torne mais homogénea com o resto dos instrumentos.

Isabel Leirós (AF) – Se no início de carreira navegavam mais pelo indie rock, neste momento seguem um rumo mais experimental. Que vos aconteceu, por exemplo, entre o “Madrugada” (2010) e este “Peso Morto”?

LF – Decorre muito da nossa evolução como músicos e aquilo que vamos fazendo em projectos paralelos. Foi aquando do Madrugada que sentimos necessidade de mudar, por variadíssimas razões. Pelo percurso que fizemos até ali, que nos levou a fazer este álbum muito pomposo, muito denso a nível musical, muitos arranjos, se calhar até complexo demais, mesmo para nós que o compusemos de uma forma abstracta e quando o passámos para algo palpável, tivemos dificuldade em fazê-lo. Também trabalhámos numa perspectiva completamente diferente, na altura trabalhámos com outras pessoas, tínhamos outros objectivos, ligados ao impulso que tivemos na fase inicial, em que foi colocada muita pressão em nós, e depois apercebemo-nos que se calhar não era aquele caminho que queríamos de facto percorrer se quisessemos sobreviver como banda – ou, pelo menos, tirar partido e gozo em ter uma banda. Por isso, a partir daí a nossa sonoridade mudou, tivemos um processo longo até chegar a algo que nos agradasse – também não tivemos pressa nenhuma nisso, na verdade – e por isso chegámos a um disco de 2013 [título homónimo] bastante diferente do “Madrugada” e agora este que é um aprofundar.

AF – Dizes que sentiram uma necessidade de mudar pela pressão que vos foi colocada. Pressão em que sentido? Do público, por exemplo?

LF – Do público, não. Nós começámos de uma forma muito abrupta: lançámos uma maquete, praticamente um mês depois tínhamos um contrato discográfico – coisa que hoje em dia quase nem existe. Lançámos um álbum que nos levou a tocar em festivais muito grandes, palcos muito grandes, à maior agência portuguesa. Acabámos por estar numa agência em que só estavam tubarões tipo Pedro Abrunhosa, Deolinda, Ana Moura. E nós lá no meio. Mas na verdade o nosso percurso musical estava a ir naturalmente por outro lado, e havia um desfasamento claro entre o que era um objectivo mais mainstream, para o qual naturalmente não estamos talhados. Mas, por acaso, o “Madrugada” até esteve cinco semanas no top e no Top+ [programa da RTP, 1990-2012], vivemos um bocado esse período. Mas por não sermos uma banda talhada para esse tipo de andanças, não nos demos bem: não conseguimos, se calhar, agradar àquelas pessoas que inicialmente gostavam muito de nós nem chegar a novos públicos, porque o público generalista continuava a achar a nossa música difícil para aquilo que são os trâmites normais da pop. Ficámos ali num limbo um bocado difícil de gerir. Não é que isso soe a fracasso ou o que quer que seja, sentimos que tínhamos chegado a um ponto e tínhamos parado, e a partir dali não sabíamos o que fazer. Portanto, é mais nesse sentido.

AF – Então acabámos por assistir ao crescimento de peixe:avião, tivemos o privilégio de assistir à evolução.

LF – Nós mudámos claramente o rumo, é verdade. Não que não nos identifiquemos com o que fizemos antes. Por exemplo, o “Madrugada” continua a ser um disco que eu acho que tem momentos muito bons, e fez parte de uma fase da nossa vida enquanto músicos. Os primeiros discos, curiosamente, não gosto de ouvir aquilo porque já foi há quase nove anos, sou uma pessoa diferente, sou um músico – quero acreditar – bastante melhor do que era. Portanto aquilo faz-me confusão se ouvir agora. Acho que isso é natural e aplica-se a qualquer banda. Mas, de facto, houve uma mudança mais radical em 2013, não por qualquer pressão externa mas sim porque fomos nós que quisemos mudar.

AF – Os elementos da banda vão mantendo projectos paralelos. Estes influenciam o rumo do colectivo? Como surge esta necessidade de fazer música fora de peixe:avião? Têm tempo para tudo?

LF – Vamos tendo, por isso é que lançamos discos de três em três anos. Alguns projectos que já existiam antes de peixe:avião, todos temos coisas paralelas, mas não tem propriamente a ver com em peixe:avião estarmos limitados – principalmente hoje em dia, que podemos fazer o que nos apetecer, não estamos importados em vender discos. Permite-nos dar resposta à necessidade de experimentar coisas, tocar com outras pessoas, ter a liberdade de fazer coisas sozinhos. Às vezes é fixe não teres ninguém com quem partilhar decisões, é bom fazer o que te apetece, bem ou mal. E às vezes é fixe trabalhar com outras pessoas com uma visão completamente diferente da tua. Depois isso repercute-se, obviamente, no trabalho com peixe:avião.

AF – Vocês estão ligados a que editoras?

LF – Estamos ligados a três: temos uma editora nossa que criámos, a PAD, temos edição CD via Fnac, e temos o vinil disponível pela Rastilho, com quem editámos um disco em 2008.

AF – peixe:avião nasceu e foi crescendo no ecossistema tão particular da cidade de Braga, rapidamente tornando-se uma referência a par de Mão Morta. Como foi este caminho?

LF – Para nós é um motivo de orgulho, claramente. Nós, se calhar, aparecemos numa altura em que depois de Mão Morta faltava outra referência e estava tudo muito estagnado. Mesmo na música portuguesa, quando nós aparecemos em 2007 não era tão normal como hoje as pessoas cantarem em Português. Era até estranho! E depois deu-se um boom logo a seguir a nós e banalizou-se, e ainda bem! Portanto, nós surgimos nessa altura e ocupámos um lugar mais-ou-menos de destaque e com alguma exposição mediática. Agora, isso não aconteceu por sermos de Braga, nem acho que a cidade influencie tanto assim a nossa música, para dizer a verdade. Aliás, neste momento [de peixe:avião] eu sou o único que vive em Braga. Embora nos identifiquemos sempre como uma banda de Braga, ensaiamos cá, somos oficialmente de cá, claramente.

AF – Falando um pouco do novo álbum, “Peso Morto”, vocês já apresentaram o disco ao vivo. Como é que o público reagiu aos novos temas?

LF – Eu acho que a reacção foi boa, as pessoas foram bastante efusivas. Não é um disco tão imediato, não é um disco de canções. Em termos de concerto em si, eu não diria que é empático. É tocar só, não há ali grande espaço para interacções, a interacção é a música. Mas sentimos uma boa reacção, provavelmente haverá quem não goste tanto por ser mais duro que os outros. Eliminámos muitas canções que tocávamos dantes, e nós estávamos ansiosos que isso acontecesse pois queríamos uma coisa mais coesa, porque ainda sentíamos que no último disco tocávamos temas dos outros e aquilo tinha ficado um bocado desenquadrado. Notava-se claramente que eram épocas diferentes. Agora não, agora para nós é óptimo e é super coeso, torna o concerto muito mais forte em termos estéticos. Também aprimorámos a questão visual, temos um novo cenário,  jogo de luzes e palco. Foi muito fácil transpor os temas para concerto porque foram todos compostos em banda, a tocar.

AF – Como foi o processo de gravação de “Peso Morto”? Que ouviram para inspiração?

LF – Nós não funcionamos muito tendo uma referência que vamos ouvir para fazer algo. Em 2013, aí sim, nós tínhamos todos uma predilecção muito grande pelo “Third” dos Portishead, também pela forma como se reinventaram e como o disco soava – e sendo um disco aparentemente difícil, era um disco muito fácil para as pessoas se relacionarem com ele, tinha boas canções revestidas de uma maneira super interessante. Ainda hoje é um disco que eu adoro. Aí sim tínhamos essa referência, não fomos copiar e nem tem muito a ver na verdade [o “Madrugada” com o “Third”], mas foi uma inspiração. Neste disco, nós nem falámos de nada e o processo foi muito simples: foi estar em sala de ensaio, juntarmo-nos e fazer as coisas funcionar. Gravámos o disco em duas fases, e isso foi a principal novidade, porque tínhamos uma série de concertos no Verão passado e sentimos que era altura de lançar novos temas, já prevendo o disco que iria sair mais à frente. E fomos gravar três dos temas, dos quais aproveitámos dois que até foram os primeiros singles, o “Quebra” e o “Miragem” foram os primeiros a ser gravados. Depois fizemos noutra fase, após compormos também durante algumas semanas, uma segunda gravação sempre da maneira mais pura possível: cada um numa salinha, todos a tocar ao mesmo tempo, e está feito. No processo de composição, testámos toda a abordagem instrumental pois usamos instrumentação menos convencional. Um dos temas foi gravado em casa por mim: eu tive em casa durante algum tempo um sintetizador que faz parte da História do rock, que é do Peter Kember [Sonic Boom, Spaceman 3] e do qual só há cinquenta, eu nem sei como é que ele deixou aquilo comigo.

AF – Ele esqueceu-se do sintetizador no gnration?

LF – Não, ele pediu-me para eu ficar com ele pois não o queria levar no avião. E eu disse-lhe «então vou ter que usar!» e usei bastante. É um instrumento que esteve em discos famosos, desde Spaceman 3, até Panda Bear, MGMT – há até entrevistas em que falam desse sintetizador nas sessões de gravação.


sobre o autor

Isabel Leirós

"Oh, there is thunder in our hearts" (Ver mais artigos)

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