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É possível um realizador criar um filme, mais do que isso, um bom filme, sem ter filmado absolutamente nada nessa obra? Essa é uma das questões que, indirectamente, No Intenso Agora nos coloca. Porque, de facto, nada do que é mostrado neste documentário foi registado por quem o assina e, no entanto, é um filme profundamente pessoal de João Moreira Salles (irmão do também cineasta Walter Salles).
Servindo-se de imagens de arquivo e de vídeos caseiros referentes a alguns dos acontecimentos mais marcantes da década de 60 do século XX – como o Maio de 68, a Primavera de Praga e a resistência no Brasil contra a ditadura militar -, João Moreira Salles criou um filme-ensaio que tem tanto de político como de poético, tanto de factual como de subjectivo.
Ao mesmo tempo que comenta e contextualiza, em voz-off, as diferentes reivindicações que motivaram esses movimentos e o impacto que acabaram por ter na sociedade civil, reflecte também sobre o abismo que há entre o idealismo político e a realidade com que este se confronta. Muitos daqueles que ajudaram a engrandecer esses movimentos viveram nesses dias o momento mais vibrante das suas existências, o momento em que tudo parecia possível e a liberdade e o sentimento de conquista eram algo de tão palpável que pensavam que nunca iria acabar. Mas acabou. E o esfumar dos sonhos de mudança ensombrou a vida de quem, durante um intenso agora, acreditou no nascimento de uma nova sociedade. Depois do fim desse sonho, para alguns, o futuro tornou-se uma rua sem saída, que os forçava a só poderem olhar para trás, nunca em frente. Como se depois de desfrutarem do privilégio de aceder ao paraíso, o retorno ao quotidiano implicasse viver num vazio cada vez maior. Nesse aspecto, as imagens do funeral de Jan Palach, o jovem de 20 anos que ateou fogo a si mesmo na Praça de São Venceslau, em Praga, como forma de protesto contra a ocupação soviética no seu país, acaba por ser o momento mais simbólico.
Os registos visuais e radiofónicos dos movimentos contestatários que Moreira Salles apresenta no seu filme não são um fim em si, mas o ponto de partida para a análise que ele faz. Uma análise que, embora tenha necessariamente uma vertente histórica, segue a liberdade associativa das imagens para justificar a sua tese. Nesse sentido, Moreira Salles centra-se principalmente no Maio de 68 e nas figuras que representavam o polo oposto do conflito, ou seja, o general De Gaulle, encarado como o rosto da sociedade conservadora a abater por parte dos estudantes que ocuparam as ruas de Paris, e no estudante Daniel Cohn-Bendit, a principal figura do movimento de contestação, que apesar de combater a sociedade capitalista, acabou por se servir dos seus mecanismos para proveito próprio. Curiosamente, na altura em que este movimento ocorreu, o próprio realizador, então uma criança, encontrava-se a viver em França. E foi precisamente devido à incerteza política que o Maio de 68 provocou nos pais do realizador, que a sua família acabou por voltar para o Brasil, onde, pouco depois, seria confrontada com novas manifestações contra a ordem instituída.
Mas não é só por ter estado próximo – ainda que, na altura, sem consciência desse facto – de alguns acontecimentos marcantes da segunda metade do século XX, que este é um projecto tão pessoal para Moreira Salles. Na verdade, para ele, o filme começou no momento em que descobriu uns vídeos caseiros que a sua própria mãe havia feito durante uma viagem à China em 1966, no início da Revolução Cultural – outro dos movimentos analisados por No Intenso Agora, embora neste caso não tivesse sido, como é evidente, um movimento de contestação ao regime do país. Nessas imagens, que o realizador só descobriu 40 anos depois de terem sido registadas, e já após a morte da mãe, é possível ver o fascínio que esta sentiu por uma realidade tão diferente daquela que havia sempre conhecido. Não há nessas filmagens qualquer tipo de admiração pela política de Mao Tsé-Tung, mas sim pela beleza natural e arquitectónica do país, e pelas particularidades culturais dos seus habitantes. Também a mãe de João Moreira Salles sentira, nesses dias passados na China, o deslumbramento de quem sente ter descoberto o paraíso na Terra. E tal como os manifestantes de Maio de 68 ou da Primavera de Praga, ela nunca mais conseguiu sentir o mesmo tipo de plenitude uma vez terminada a viagem à China. Na visão do filho e autor deste filme, a depressão de que a mãe a certa altura começou a sofrer e que terminou com o seu suicídio, pode ter sido resultante disso mesmo: de não ter conseguido voltar a lidar com a realidade depois de se ter sentido acima dela.
Um dos aspectos mais relevantes neste filme (que conta com a banda sonora de Rodrigo Leão, premiada no Festival Internacional de Documentários Cinéma Du Réel) é precisamente a capacidade de, a partir de fragmentos da vida familiar do cineasta, que aparentemente nada têm a ver com o contexto político do seu tempo, analisar a sua carga simbólica confrontando-as com imagens de movimentos transformadores da época. Moreira Salles não está apenas a analisar um momento na História, mas a própria consequência da passagem do tempo e do que essa realidade faz aos sonhos de quem chegou a acreditar que o intenso agora seria eterno. Assim, o filme permite-nos também pôr em perspectiva os movimentos e reivindicações que marcam o nosso tempo, bem como os sonhos da actualidade.
Mas há outro ponto fundamental na concretização deste filme, e que já tinha sido mencionado no início do texto: este é um filme que traduz a visão pessoal do realizador, mesmo que o próprio se tenha “limitado” a fazer um (enorme) trabalho de pesquisa e recolha de imagens registadas por outras pessoas, muitas delas anónimas e sem qualquer ligação entre si, dando-lhe depois uma sequência e unidade autoral. Mesmo sem ter pegado numa câmara, João Moreia Salles demonstrou uma coisa fundamental em relação ao próprio cinema. É que se há algo que define esta arte (e não só no género documental) é a montagem. É pela escolha e sequência que se dá às imagens registadas que um filme ganha sentido e adquire uma identidade própria.