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Louis CK tem-nos brindado com grandes exemplos de boa comédia, na senda de uma escola que privilegia o banal e o quotidiano (a de Jerry Seinfeld ou Larry David), acrescentando-lhe angústia, dramatismo e autodepreciação (influência de Woody Allen ou Robin Williams), elementos pouco comuns do humorismo clássico. A este propósito, pode dizer-se que o seu humor remete para o papel fundamental da arte enquanto mecanismo conversor do real, que o reprocessa, transforma e por fim devolve num formato suportável: não há nada mais catártico do que a capacidade de rir da própria desgraça. Mas I love You Daddy chega alavancado por uma propaganda bem mais poderosa do que o talento do realizador. Por cá, fomos suficientemente curiosos ou rebeldes para manter o lançamento do filme, cancelado nos Estados Unidos na sequência das acusações de exibicionismo e assédio sexual que, tendo vários anos (dizem as más línguas), vêm agora a público no dominó espoletado pelo escândalo Weinstein. Nem o mais isento dos espectadores poderá comprometer-se a resistir ao impulso do julgamento (da culpa ou da inocência), ainda mais quando o argumento nos coloca perante uma representação do próprio Louis CK (ou quase) e um conflito que envolve comportamentos sexuais menos próprios.
Deve a obra ser dissociada de quem a faz?
Naturalmente que sim.
Deve a obra ser dissociada de quem a faz? Naturalmente que sim. Importa por isso perceber o valor de I love You Daddy, sem ceder à tentação de diminuí-lo ou exacerbá-lo em função dos acontecimentos que agora vieram a lume. Comecemos pela história: Louie protagoniza Glen Topher, um produtor televisivo a braços com um novo projecto, o envolvimento com uma actriz conhecida (Rose Byrne) e a educação da filha adolescente (Chloe Grace Moretz), uma Lolita de 17 anos, pronta a dar cabo da paz de espírito do papá. China, assim se chama a dita cria, desenvolve uma estranha amizade com Leslie Goodwin (John Malkovich), realizador sexagenário e célebre predador de inocentes rapariguinhas, sobressaltando o pobre Glen, que se arrisca a perder o afecto fácil da garota (que repete incansavelmente o “I love you, daddy” do título) ao tomar uma posição mais rígida quando àquela amizade. O elenco conta ainda com Charles Day (um amigo e colaborador), Helen Hunt (a ex-mulher), Edie Falco (Paula, a sócia) e Pamela Adlon (Maggie, uma espécie de namorada). As notas de intenções falam de uma homenagem a Manhattan (1979), evidente no eterno cenário nova-iorquino, na partitura e na fotografia a preto-e-branco. Mas o verdadeiro tributo a Woody Allen está nas personagens: As femininas – fortes, determinadas e dominadoras – e principalmente as masculinas – Glen, o produtor inseguro, desorientado e quase patético, absolutamente dominado pelas várias mulheres da sua vida, e Leslie, o cineasta sénior com fama de apreciador de raparigas menores. É ainda possível encontrar muito do cinema de Woody Allen na arte de debater, apalermando, no ritmo da narrativa e no tratamento do tema, onde a sexualidade é discutida por aproximação ao conceito freudiano de perversidade polimorfa, que o mundo mais conhece através de Woody Allen do que de Freud: a disponibilidade de uma adolescente inexperiente para um universo sexual do qual nada conhece, e por isso nada receia, ou a superioridade intelectual do perverso-adulto que subverte ou renega o moralismo vigente.
O contexto agora é outro, não se podendo esperar que os dispositivos de abordagem à sexualidade no cinema que Woody Allen utilizou na década de 80 (é certo que nunca os largou) produzam os mesmos efeitos em 2017. Em boa verdade, nem a ninfeta é doidivanas, nem o cineasta é tarado, nem o pai é inapto. I love You Daddy chega envolto numa bruma clássica (e classista) mas entrega uma moralidade contemporânea, mais púdica porque submetida a um escrutínio mais amplo, que exila a sexualidade para o campo do delito (sem o expor) e antes se centra nas dificuldades das relações, nas dores do crescimento, nos desafios da paternidade, no fascínio das meninas por homens mais velhos, no fascínio dos homens pelas meninas …. enfim, aspectos bem mais quotidianos que singulares – temas que Louis CK trata muitíssimo bem, basta recordar as séries Louie ou a fabulosa Horace and Pete.
Engraçado sem nunca cair em graça, I love You Daddy sai largamente favorecido pelo peso das circunstâncias, já que o seu suposto efeito-espelho exerce um fascínio que dispensa explicações: o espectador é o voyeur a quem é oferecida a oportunidade de testar a máxima Oscar Wilde (*). Tendo em conta essa ocasião privilegiada de exposição, que aqui nem se assume nem se evita, falta-lhe técnica e ousadia. Há erros de raccord flagrantes, falta-lhe o wit dos textos de Woody Allen e mesmo os actores (excepção feita para Malkovich, sempre genial, e Moretz, dona de um currículo e uma versatilidade impressionantes para a sua idade) pouco mais fazem do que os seus próprios papéis em produtos que todos já vimos. Contas feitas, I love You Daddy é saboroso mas não extraordinário – não pelo facto do realizador ser um alegado pervertido (normalmente, dão belíssimos cineastas), mas porque há décadas que alguém prepara, com os mesmos ingredientes, verdadeiros festins cinematográficos, sem depender da publicidade de uma vida que teima ainda em imitar a arte.
(*) Life imitates art far more than art imitates life.