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Apesar dos 77 anos de idade, WA recusa-se a abrandar o ritmo, mantendo escrupulosamente a meta de realizar um filme por ano; para além de dirigir, mantém igualmente o compromisso da escrita, porventura o seu (ainda) maior talento. E depois das três últimas viagens pela Europa – das quais se destacam o delicioso Midnight in Paris – o realizador regressa aos Estados Unidos, mas não à sua amada Nova Iorque; S. Francisco é desta vez o pano de fundo escolhido para um argumento bem menos risonho do que o habitual, uma narrativa trágico-cómica com um poderoso subtexto, que remete para a tonalidade emocional da sua “fase Bergman”. Blue Jasmine é uma overdose de tensão.
Eminentemente dramático, temperado com um humor corrosivo e uma certa crítica social subliminar, Blue Jasmine explora as diversas dimensões da profunda crise existencial da protagonista – Jeanette, ou Jasmine – emocional e financeiramente falida após do suicídio do marido (Alec Baldwin), que fora preso pelo FBI na sequência de negócios pouco legais. Esgotada e deprimida, ela recorre à irmã adoptiva Ginger (Sally Hawkings), também ela uma vítima das artimanhas desonestas de Hal, e muda-se para casa dela em São Francisco, determinada a recompor-se e a começar de novo. Forçada a lidar com uma alteração drástica de estilo de vida, ela procura, no seu novo contexto, reencontrar a sua identidade e reconstruir a sua existência à imagem das ilusões de grandeza que sobrevivem do seu passado. Quando essa tarefa se assume como quase impraticável, o seu espírito já quebrado mergulha num estado de alienação cada vez mais profundo, na fronteira entre o mundo real e o que quer imaginar para si. Os dias de glória de Jasmine na sua luxuosa mansão em Nova Iorque são-nos revelados em luminosos flashbacks, que contrastam com o ambiente claustrofóbico e ruidoso de S. Francisco, e nos mostram uma outra Jasmine, hoje apenas uma sombra de si mesma.
WA tem assumido em entrevistas que a história se baseia, de certa forma, na peça de Tennessee Williams, A streetcar named desire, apresentando uma versão contemporânea da personagem de Blanche Dubois – imortalizada por Vivien Leigh no filme de Elia Kazan (1951). A referência à peça e à personagem não são novas no cinema de WA, que já tinha parodiado Blanche num momento hilariante de Sleeper (1973), protagonizado por si próprio. A Blanche de Tennessee Williams é uma figura singular, uma mulher muito atraente, altiva e refinada, com um sentimento de superioridade em relação aos demais, mas extremamente frágil e carente de um equilíbrio psicológico, emocional e financeiro que um dia lhe fugiu. Será bem mais fácil desempenhar um perfeito lunático do que compor uma personagem borderline como Blanche, que caminha na débil fronteira entre a sanidade e a loucura, mas mantendo o ténue (des)equilíbrio a que tal estado necessariamente obriga – e no caso de Vivien Leigh, para além do reconhecimento eterno, ela ganhou um Óscar de melhor actriz pelo papel, que é hoje ainda uma referência incontornável na história do cinema. A Jasmine de WA, cujo nome é também uma referência à peça (a dada altura, Blanche afirma, acerca do homem por quem se apaixona: he’s not the type that goes for jasmine perfume), é também uma mulher complexa e vulnerável, no limiar do colapso psicológico, que partilha com Blanche a mesma beleza física e pobreza de espírito, o mesmo passado auspicioso e o mesmo presente desmoronado – e encontrou em Cate Blanchett uma actriz à sua altura.
WA tem um fascínio indiscutível por personagens femininas fortes, cujas presenças sempre se impõem mesmo quando não são as protagonistas óbvias dos seus filmes. E ao longo da sua longa carreira, soube rodear-se de actrizes que, com o seu enorme talento, deram vida a mulheres inesquecíveis. O desempenho da australiana Cate Blanchett no retrato algo impiedoso de Jasmine é descomunal; num registo pessoal diferente da Blanche de Vivien Leigh (recentemente, ela interpretou Blanche Dubois nos palcos da Broadway), ela domina o ecrã com o seu semblante perdido e comportamento neurótico, em luta consigo mesma, por vezes fria e detestável, outras vezes frágil e dependente, mas sempre irrepreensível e imune à dimensão caricatural de uma personagem que já tem lugar cativo na quimera do cinema; ficaremos a aguardar os prémios, mas para já, na memória cinéfila, Cate Blanchett será Jasmine, como Diane Keaton é Annie Hall. Ao lado da estrela maior, brilha um elenco igualmente fantástico composto por Peter Sarsgaard, Alec Baldwin, Bobby Cannavale e Louis C.K, com especial destaque para o desempenho de Sally Hawkins no papel de Ginger, irmã e contraponto da protagonista.
Com um final pouco característico, Blue Jasmine deixa ainda a porta aberta a subsequentes considerações – não sobre Jasmine, mas sobre o destino e as suas dualidades – e confirma o olhar socialmente crítico de WA (muitas vezes alicerçado na metáfora do confronto entre o real e o imaginado), a preocupação reflexiva que imprime à maioria dos seus trabalhos, o trágico por detrás do risível, o fascínio pela questão dos limites da sanidade e a veneração pela figura feminina enquanto contentor emocional capaz de abarcar todas as emoções do mundo. Não pode, por isso, dizer-se que Blue Jasmine seja uma verdadeira surpresa no universo do realizador, mas é, sem sombra de dúvida, um dos mais inspirados e incisivos trabalhos dos seus últimos anos.