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Oito décadas é muita coisa – seria natural que a criatividade se fosse esgotando. No caso de Woody Allen, a constância do traço auto-referencial será mais característica do que consequência da sua longevidade, por isso, é com prazer que continuamos a identificar variações das suas temáticas de eleição em cada filme. Wonder Wheel não é excepção, mas chega com um refinamento próprio de um cineasta que, não tendo já nada a provar, não abdica da evocação do seu percurso, das suas obsessões ou dos melhores recursos para dar vida aos seus argumentos.
Assistimos uma vez mais a um regresso ao passado (desta vez à Coney Island dos anos 50, terra de Alvy Singer, personagem de Annie Hall) e ao teatro e cinema da época, inspirados pelas obras dos grandes dramaturgos como Tenesse Williams ou Eugene O’ Neill. A acção passa-se num parque de diversões junto à praia, onde vivem Humpty (Jim Belushi) e Ginny (Kate Winslet), proprietários da roda gigante, um casal pouco enamorado e a braços com problemas financeiros, noites e dias desinteressantes e ainda um filho (dela) com inclinações pirotécnicas. A sua vida pacata é subitamente perturbada pela chegada de Carolina (Juno Temple), filha de Humpty há muito perdida para um casamento com um gangster perigoso, que agora regressa, arrependida. Sabemos tudo isto através de Mickey (Justin Timberlake), o salva-vidas, pretenso dramaturgo e narrador a despropósito, que salta para a história envolvendo-se com Ginny (a nostálgica ex-actriz de 40 anos, sedenta de uma mudança de vida) e, logo de seguida, apaixonando-se por Carolina (a jovem insensata em busca do amor verdadeiro).
‘Obsessed by a fairy tale, we spend our lives searching for a magic door and a lost kingdom of peace’. A frase de Eugene O’ Neil poderia descrever a sinopse de Wonder Wheel, mas também o cinema de Woody Allen.
Visualmente, Wonder Wheel é um dos melhor trabalhos de WA – se não mesmo o melhor. A atmosfera cénica e todos os seus detalhes (iluminação, figurinos e mise-en-scène) invocam na perfeição o ambiente do cinema e o teatro dos anos 50. A fotografia de Vittorio Storaro (na sua segunda colaboração com WA depois de Café Society), uma presença fortíssima carregada de cores quentes, brilhos e exageros que parece esculpir actores e cenografia, é em si mesma uma personagem. Num clima de vaudeville apimentado com um toque de máfia, WA reinventa o seu cinema nervoso e palpitante, que mais uma vez versa sobre a rotina, a desilusão e o escapismo (delicioso o ilogismo do parque de diversões enquanto palco dramático), investigando a vulnerabilidade humana em situações de desgaste emocional. Persiste também o fascínio pela questão dos limites da sanidade mental e a eterna devoção à figura feminina, o continente capaz de abarcar todas as emoções do mundo. Referindo-se à capacidade de escrever grandes papéis femininos, Kate Winslet disse recentemente numa entrevista: “De certa forma, Woody Allen é uma mulher”.
A aparente simplicidade do argumento (dividido, grosso modo, em três actos clássicos) consente aos actores uma latitude interpretativa que lhes permite transpôr o texto e conferir-lhe uma teatralidade que combina lindamente com o requinte visual do filme. As interpretações de Jim Belushi e Juno Temple são dignas de nota, apenas Justin Timberlake parece ficar fora do ramalhete, com uma prestação desajeitada que claramente destoa. Mas como Cate Blanchett em Blue Jasmine, é Kate Winslet quem mais cintila. É ela a grande figura romântica em espiral descendente, carregada de inseguranças e medos, que uma vez mais reinterpreta (aqui numa versão mais plebeia) a Blanche DuBois de Tenesse Wiliams – e do próprio WA. Presa num casamento sem amor e numa rotina de trabalho, enxaquecas e uma tendência reprimida para beber demais, ela vislumbra a esperança da felicidade ao envolver-se com Mickey (o nosso quebrador da quarta parede) e afunda-se num drama existencial digno das grandes heroínas trágicas da dramaturgia da época. Se muito já se disse sobre o talento imenso de Winslet, este papel apenas reafirma que ela é uma das enormes actrizes da sua geração. A sua composição trágico-cómica de Ginny é um carrocel de emoções; de resto, todo o filme é um carrocel afectivo, permitindo a todas as personagens experimentar altos e baixos de auto-estima, amor/desamor, alegria, raiva e arrependimento, num crónica dramática que WA hiperboliza até ao risível e ao absurdo, para depois retomar uma observação mais amarga.
Obsessed by a fairy tale, we spend our lives searching for a magic door and a lost kingdom of peace. A frase de Eugene O’ Neil poderia descrever a sinopse de Wonder Wheel – que mais não faz que exibir um melodrama muito bem executado e carregado de subtilezas autorais – mas também o cinema de WA, ancorado numa assinatura inconfundível que une tragédia e comédia, reflexão e disparate, e tem vindo a integrar uma preocupação clara com a composição estética. É justo dizer que a carreira de WA permanece em maravilhosa roda-viva, na direcção de um crepúsculo-síntese das várias fases da sua carreira. O WA do ano é possivelmente o WA da década.