Reportagem


Bob Dylan

Nunca vai parar de se reinventar

Altice Arena

22/03/2018


Não existem muitas regras nos palcos que Bob Dylan pisa. Aos seus 76 anos é ainda o mesmo espírito obstinado, a mesma voz agitadora que nos sacode o pensamento, o mesmo raciocínio lúcido e mordaz que acompanhamos, por vezes, com alguma dificuldade. O americano que ousou electrificar a folk da América profunda provou mais uma vez, na passada semana na esgotada Altice Arena, que nunca vai parar de se reinventar.

“I’ve been trying to get as far away from myself as I can”, ouve-se em “Things Have Changed”, a primeira música da noite, que arrecadou em 2000 um Óscar e o um Globo de Ouro, e que hoje bem poderia resumir a sensação com que Bob Dylan nos deixa. A de alguém que não quer ser quem é. Alguém que recusa o estatuto de estrela e que fica alheio à devoção dos muitos públicos com quem se vai cruzando.

Quando Robert Allen Zimmerman se refugiou sob o nome do escritor Dylan Thomas, mais do que um nome artístico fácil de assimilar, o músico encontrou uma capa que até hoje nos escondeu subtilmente o seu verdadeiro eu. E não deixa de ser curioso em como alguém que já discorreu por tantos temas em tantas linhas das suas muitas canções, não esquecendo também o livro de crónicas pessoais que assinou, continua a ser uma figura tão enigmática. O mais provável é que estejamos a complicar, talvez Bob Dylan seja a pessoa mais simples que possamos imaginar. Dono de uma expressão prodigiosa sim, mas envolto em mitos talvez um tanto fantasiados.

As suas músicas essas continuam com a mesma honestidade de sempre. Há familiaridade na country cálida de “Summer Days”, no rock’n’roll de “Honest With Me”, nos blues de “Tangled Up in Blue” e até nas canções alheias em que agora se demora – relembramos que há um ano atrás editava o álbum Triplicate, três discos de covers dos cancioneiros mais emblemáticas da américa popular, como Frank Sinatra ou Lee Adams – embora para Lisboa tenha reservado apenas uma, “Why Try to Change Me Now” de Cy Coleman, contrariando a setlist dos últimos meses em que todos apostavam, e que o levou até a abandonar o piano, levantando-se para uma interpretação ardente, onde nem a sua voz rouca e inábil para ginásticas musicais, tornou o momento menos romanticamente sofrido.

As boas surpresas chegaram com a praticamente irreconhecível “Don’t Think Twice, It’s All Right”, a ocupar na setlist prevista o lugar de uma cover – acreditamos que uma gentileza de Dylan, conhecido por fazer pouco caso dos clássicos que o público tanto anseia ouvir. É bem verdade que o dedilhar delicado da guitarra folk original só existiu na nossa cabeça, mas a dureza dos versos “I ain’t sayin’ you treated me unkind/ You could have done better but I don’t mind/ You just kinda wasted my precious time” atingiu-nos o peito da mesma maneira.

O mesmo se pode dizer de “Blowin’ in the Wind”, memória também do velhinho The Freewheelin’ Bob Dylan de 63, que a banda de luxo que acompanha Bob Dylan, e da qual injustamente ainda não falámos, transfigurou por completo. Aquela energia do violino contrabalançada com a gravidade do contrabaixo, até nos fez esquecer da doce nostalgia que teria sido ver Dylan nesta noite pegar na guitarra acústica a solo, pelo menos uma vez.

“Ballad of a Thin Man” fez a despedida desta noite de emoções confusas, “because something is happening here but you don’t know what it is”, num concerto irrepreensível, onde não se sentiu sequer a falta de um “boa noite” ou um “obrigado”. Um legado assim, testemunhado ao vivo, não precisa de floreados ou palavras vãs.


sobre o autor

Vera Brito

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