MEDEIROS/LUCAS

Sol de Março
2018 | Lovers & Lollypops | Alternativa, folk, música atlântica

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A música popular portuguesa, em especial no último meio século, deu um salto quantitativo e qualitativo assinalável, criando-se uma sonoridade que, na sua mediania é formulaica mas com interesse e, no seu melhor, um mundo por si mesma. Poucos são aqueles que conseguiram retratar com sons a relação deste País com o mar, contudo. Neste lote de bravos contam-se os MEDEIROS/LUCAS.

Talvez porque o seu núcleo duro – Carlos Medeiros e Pedro Lucas – seja originário dos Açores, não conhecemos quem melhor o observe e cante na música popular portuguesa recente. Não apenas pelas canções e seus títulos, mas também pelo ondear que muitas das suas melodias e ritmos revelam; nelas ouvem-se a lonjura, a luz e o negrume agigantado de uma tormenta no Atlântico (de Norte a Sul, dadas as suas influências). Como já antes escrevemos, olham o mar como se fossem o Ilhéu de São Roque ou o Pico, mas com instrumentos, microfones e um PA. Certo é que passaram da terra vermelha e da areia preta dos Açores para todo um chão cada vez mais lusófono.

Comparação preguiçosa é a de ir buscar José Afonso, Fausto, José Mário Branco e Adriano Correia de Oliveira a este Sol de Março; o busílis é que é acertada. Mantendo a formação quase intacta – Carlos Medeiros, Pedro Lucas, Ian Carlo Mendoza e Augusto Macedo, voltaram a trazer um corpo de convidados que não vem apenas mostrar-se. João Pedro Porto, escritor também açoriano, continua como letrista de serviço.

Lampejo deixa-nos em terreno familiar e confortável: a guitarra de Lucas volta a acenar-nos, tal como a voz solene e límpida de Medeiros. Segue-se-lhe Podre Poder, brilhante exemplo do que são os MEDEIROS/LUCAS dos dois últimos discos: a elegância da palavra de Medeiros e a filigrana sóbria das ideias de Lucas. Em Corpo Vazio (de Terra do Corpo, 2016), com a companhia de Selma Uamusse, alertava-se contra um corpo vazio; agora, investe-se contra patriotas sem pátria, contra podres poderes, contra a morte – enfim, contra o que não tenha alma.

Com Obscurantismo, ao contrário do que escreveu Porto e do que canta Medeiros, o som não é tolhido nem mal ouvido: os teclados do convidado Rui Souza abrem ainda mais a cortina da luminosidade a que a banda nos habituou e que debate neste álbum. Se o grupo tem sempre evoluído com os olhos postos no passado dos outros e pouco no seu, em Clarificação abre uma excepção, recordando a sua Canção do Mar Aberto. Que nem marinheiros que nunca perderam as graças do mar, lembram a cadência e o próprio mar – onde outrora caminharam sobre as ondas, agora unem a luz às marés.

Pensar que os MEDEIROS/LUCAS são grandiloquentes e que se levam demasiado a sério é um erro, como bem se ouve no humor de Elena Poena. Personagem aparentemente criada para este álbum, é um animado interlúdio. Temazo, por supuesto.

Parece que Poena andava perdida feita espécie de fradinho-da-mão-furada e, para tal, os MEDEIROS/LUCAS fizeram-lhe uma canção em forma de anúncio: Em Condicional. Também aqui se nota a expansão da paleta da banda: xilofone e trompete asseguram uma melodia que muito acrescenta aos seus tradicionais elementos compositivos. Não lograram salvar a finada Poena, contudo.

Título apropriado para O Trapezista: por entre os mestres da canção portuguesa e a era digital, é, porventura, a maior emulação daqueles no álbum. Uns sopros que levam um Sol de Março até Cantigas do Maio, um refrão de leveza (mas não de frivolidade) que não destoaria algures em sessentas ou setentas e arranjos que se distinguem de muitos que por aí andam. Da leveza do trapézio metafórico para a tensão de Galgar. O aço que lavra a terra na veia, do sangue do espírito acintoso que por aí anda a fazer arder tudo indiferente ao desfecho, uma quebra de ímpares arranjos que antepara todo o conjunto.

Da cavalgada tensa trava-se para gozar o rutilante e Sol de Março, tão bonito que até arrepia, como a canção na sua simplicidade. Da luz para para a cave fumarenta do Hot Clube até bem tarde, com As Calendas. Carlos Medeiros vira crooner de um slowcore absorto numa letra que deixa pensamentos pela rama. Na capa do disco vê-se um pavão; parece-nos que não há canção que melhor simbolize a exuberância (sempre sóbria) do bicho, muito por culpa do trabalho ao trompete de Antoine Gilleron.

Verdadeiro pulo para o alto, Fado do Salto: um contrabaixo de João Hasselberg que uiva, uma passagem que mais parece prog rock (cortesia da textura do Fender Rhodes de Tine Grgurevic), toda uma estrutura que é o corolário da música miscigenada dos MEDEIROS/LUCAS, com o sal da terra a ser a voz de Medeiros, que conclui a canção (e o álbum) com um monólogo.

Ao terceiro disco e com um som amadurecido e próprio, não há que enganar, mas sim que proclamar: os MEDEIROS/LUCAS são uma grande banda. Representam o que de melhor tem o engenho nacional quando se mete a construir pontes entre a música popular nacional dos grandes autores de há cinquenta anos e estes tempos em que o Instagram, o YouTube, o Facebook, o Spotify e por aí fora são prateleiras e caixotes de prospecção musical. Se fizermos um mau Mundial não haverá problema (salvo para a malta das apostas), pois teremos um Sol de Março para decompor todo o ano.

E, no encerramento desta trilogia de discos, jogamos já na fase de qualificações para a próxima fase da banda.

Vinte anos depois da Expo ’98, catorze depois do Euro 2004 e numa altura em que, passe o lugar-comum, querem fazer de Portugal (e da portugalidade) uma montra viva, liguem-se as colunas de um P.A. com alcance global e mostre-se projectos como os MEDEIROS/LUCAS, que estes anos que vivemos também são deles e, sobretudo, musicados por eles.


sobre o autor

José V. Raposo

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