Delamotta

La Ronda
2018 | Malafamado Records | Folk, Tropical

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La Ronda” é um disco que tem a viagem como mote. Quer a física, ou geográfica, quer a filosófica. É um disco que apela à liberdade incondicional e que não se sente confortável com fronteiras ou limites. Musicalmente, foi também o caminho que decidimos tomar como conjunto. Desde o início que, juntamente com o meu irmão, Gonçalo Mota, o Renato Sousa e o Bernardo Pereira quisemos que as canções viajassem em nós e deixar-nos regressar nelas com alguma coisa de diferente e com sorte, melhor do que éramos antes, sem nos preocuparmos muito com o estilo ou a fórmula certa.

#1 Pambu Njila

Interessa-me a mitologia, ou se quiserem, os aforismos religiosos, pela forma única que têm de abordar os vários aspectos da condição humana e lhes dar dimensão. Nesse sentido gosto muito dos cultos afro-brasileiros que se baseiam na adoração de semidivindades que, segundo é a crença, já pisaram este mundo noutros tempos e trabalham agora, numa espécie de limbo, no sentido de nos ajudar ou nos prejudicar. Há um paralelismo com os deuses clássicos, ou os cultos pagãos pré-cristãos que coloca as personagens no patamar do defeito humano, capazes de fazer o bem, ou o mal, de errar e de se redimirem. Este tema baseia-se numa dessas personagens, a Pambu Njila, nome crioulo para Maria Padilha, uma espécie de femme fatal ancestral, que também tem o dom de prever o futuro.

#2 Dona Iara

Também ela de ADN africano, metamorfoseando-se mais tarde no Brasil como uma das principais entidades mães dos cultos pagãos, sendo mais conhecida como Iemanjá. É um dos temas que iniciaram a escrita deste disco. Vem do mar, ainda que de uma forma de o ver menos típica. As palavras atribuem significados por vezes demasiado herméticos às coisas e o facto de o mar ser uma palavra masculina fecha-o a outras possibilidades. Sendo português e descendente de gente da pesca, o mar está-me no sangue, por outro lado, o facto de ter sido criado por mulheres obriga-me a procurar esse lado materno perdido em todas as coisas. A ideia da Dona Iara surgiu por ser a santa do mar, o que por alguma razão me lembrou o Nascimento de Vénus de Botticelli, remetendo-me, também, à infância, à iconografia presente dos barcos de pesca em Setúbal, onde existe o culto de uma santa vestida de azul que protege os pescadores das intempéries do ofício.

#3 Treacherous

Este tema foi dos últimos a surgir. É uma espécie de diálogo interno entre alguém e os seus demónios. O facto de por vezes nos atraiçoarmos por darmos ouvidos ao que grita mais alto dentro de nós, ainda que tenhamos consciente que não é o melhor caminho. A escolha que fazemos põe-nos por vezes em terrenos menos férteis. No fundo Treacherous vem dessa reflexão, dos erros que cometemos e de que forma magoamos as pessoas nesse processo.

#4 Mesmo

Mesmo é um tema que fala de esperança. Da forma como acredito que a vida devia ser encarada. Sou mais realista do que optimista, mas tento-me forçar a fazer pazes com o que de difícil vai surgindo ao longo do caminho e lembrar-me de continuar de mente e coração abertos mesmo nas horas mais negras. São as tais pedras no caminho e os futuros castelos do chavão. Foi talvez o tema que demorou mais a compor e acertar nos arranjos. Era um tema só de guitarra e voz, que o Gonçalo, o Renato e o Bernardo, com a ajuda do nosso produtor, o Sergio Mendes, trouxeram para outro universo. No fim convidámos a Catia Mazari Oliveira para o interpretar e confesso que sinto que o tema é tão dela quanto nosso. Destaco, também, o trabalho maravilhoso de clarinete do Zé Miguel Zambujo a quem sou eternamente grato.

#5 No Longe Demais (Prólogo)

Este tema foi escrito, literalmente, no outro lado do mundo, durante uma temporada em que passei com o Renato Sousa, o nosso guitarrista, a tocar num navio de cruzeiro. As paisagens do pacífico tropical foram-se acumulando e as saudades, como é próprio delas, alastrando-se em cada pensamento. Viajar implica, inevitavelmente, conhecer-se por dentro também, sendo que não consegui deixar de passar a experiência, externa e interna, para o papel.

#6 Gota a Gota

Gota a Gota é um tema escrito pelo Bernardo Pereira, o nosso baixista. Gostei tanto dele que lhe disse, assim que o ouvi, que era um tema que tinha de entrar no disco de Delamotta. Por alguma razão, talvez pela melancolia latente na composição, lembrei-me de traçar uma analogia entre o choro e o ciclo da água, sendo cada um deles algo de fundamental ao processo de renovação que tem de caber acontecer.

#7 A Preto e Branco

A Preto e Branco é um retrato, mais ou menos nítido do que carregamos de alguém ou de alguma coisa quando nos apartamos demasiado tempo. São os fragmentos que ficam, os pequenos detalhes, despidos da cor que os sentidos guardam mas que se vai perdendo ao longo do caminho, no fundo da vontade de preservar todas as pequenas memórias.

#8 Losing Ground

A história da nossa espécie parece ter um padrão mais ou menos cíclico. Apesar de todos os passos que damos no sentido de nos melhorarmos e de remediarmos os erros e atrocidades cometidas no passado, parecemos viver ainda num ciclo vicioso de auto-extermínio, quer na forma violenta como lidamos com as diferenças entre nós, quer na sofreguidão com que consumimos os recursos naturais que o planeta ainda nos vai cedendo. Sob os signos que nos limitam a visão como a política, a religião, as disputas territoriais, as bandeiras e a irracionalidade patriótica, caminhamos para o abismo a passos largos e é difícil, por vezes manter o optimismo.

#9 Circle Of Beasts

Este tema é uma pequena fábula em torno das personagens do zodíaco. Uma vez mais, interessa-me o mito, pela forma subtil com que expõe as qualidades e os defeitos do ser humano. Em cada mito há uma lição para reflectir e neste caso fomos beber ao que se esconde atrás de cada ícone da astrologia clássica, com a intenção de lhes criarmos um universo simbiótico em que todos se relacionam em harmonia, esse estado de alma que parece ser tão utópico quando saímos do mito para a realidade.

#10 No Longe Demais (Epílogo)

Este tema é a segunda parte do que ficou dessa experiência nas ilhas do pacífico, e que por algum motivo me pareceu ideal para fechar este disco. Apesar de alguns dos temas já existirem anteriormente, a ideia do disco nasceu lá, no outro lado do mundo, e foi no regresso que ganhou forma e vida. No fundo é um final que quer começar outra coisa, que se quer transformar. Por vezes estar longe coloca-nos mais perto de nós próprios, da nossa natureza e dá-nos ferramentas para dispersarmos o trigo do joio, o que realmente queremos para nós e quem no fundo queremos manter perto.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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