//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Dez Takes é a nova rubrica do Arte-Factos onde a cinefilia se apresenta na melhor forma possível: a troca de opiniões. Todos os meses, farei um TOP 10 acerca de um determinado tema, que pode ir do mais genérico ao mais específico. Não serão necessariamente os melhores em cada um, porque é para isso que serve a discussão, mas serão de alguma forma relevantes, incontornáveis ou simplesmente do caraças. Este último será sempre o critério predominante!
Numa primeira edição, grávida de começos, o tema é o dos créditos iniciais de filmes. Obras de arte por si só ou auxiliares preciosos no estabelecimento do ambiente do filme e da sua história, estas sequências prendem a nossa atenção e agarram-nos pela mão pela narrativa. O Dez Takes de Janeiro destacará algumas das melhores. Algumas regras: franchises de filmes não estão incluídas (o que significa que deixei de fora momentos icónicos de Star Wars, a saga de James Bond ou os filmes de Alien, nomeadamente o primeiro). Da mesma maneira, sequências de créditos com planos sequência narrativos foram também excluídas, por se enquadrarem melhor em cenas de abertura de um filme, tema que será tratado no futuro.
Posto isto, comecemos!
É impossível não falar de créditos iniciais sem o nome de Bass surgir de um buraco. O casal de Saul e Elaine revolucionou esta pequena arte dentro da própria arte do cinema e deixou-nos alguns exemplares incríveis. Enumerá-los é entrar numa espiral de bom gosto cinematográfico: Psycho, North by Northwest, Anatomy of a murder, The man with the golden arm, The seven year itch, Spartacus, West Side Story, Casino, Goodfellas… No entanto, destacando uma, e mesmo reconhecendo que Grand Prix possui das mais cool sequências de créditos de sempre, é impossível contornar Vertigo. Clássica pelo design, prende-se à perturbante banda sonora de Bernard Herrmann e coloca-nos logo nas várias vertigens do filme: o erotismo de uma boca, as vertigens da altura e os labirintos das mentiras e ambiguidades expressas num dos melhores filmes de Hitchcock, que tantas vezes usou o talento de Bass para pôr o espectador em sentido e em tensão mesmo que uma única das suas imagens tivesse surgido no ecrã.
Muitas vezes, a intenção destas sequências é deixar-nos logo de boca aberta, lançar um calafrio, provocar espanto. Isso pode ser conseguido de várias maneiras: com imagens de tal beleza que fazem o oxigénio parecer supérfluo, como The Fall, de Tarsem; a simples precisão estética de Drive, de Winding Refn; ou o plano que se afasta da Terra e deixa para trás todo o Cosmos em Contact. Mas se falamos de espaço e de maravilhamento, 2001, A Space Odissey é o nome mais óbvio. Como quase tudo o que tem de revolucionário, é incrivelmente simples. O plano do alinhamento cósmico dos nossos 3 objectos astronómicos (Luta, Terra, Sol) ao som de “Also Spracht Zaratustra” de Strauss. A Lua dá lugar à Terra e por detrás do nosso planeta, o sol brilha em esplender, celebrando com a sua luz a evolução da nossa espécie, que é um dos temas do filme, e o fascínio eterno das estrelas sobre o espectador. Num minuto, condensou-se um filme complexo e Kubrick mostra ao que vem: entregar a Maravilha.
Apesar do cuidado de nomes como Wes Anderson, poucos realizadores na actualidade usam uma sequência de créditos como David Fincher. Demiurgo como poucos desde Kubrick, Fincher concebe o filme como algo total e se puder lançar o espectador para o meio da arena logo nos primeiros segundos, tanto melhor. Sejam o som e a fúria da abertura de Fight Club, a elegância de nomes a flutuarem Manhattan como balões de Panic Room ou o mundo psicológico de Lisbeth Salander no peso e delírio de The girl with the dragon tattoo, Fincher sabe o que faz com as suas sequências iniciais. Poucas foram mais revolucionárias, ainda assim, que a de Seven. Influenciou trezentas e tal sequências desde então e é tétrica e perturbante, com uma remix de Closer, dos NIN a dar o tom, reflectindo a mentalidade de um vilão que só conheceremos uma hora e pouco depois. Os livros que se vêem foram feitos à mão e Kyle Cooper, que editou e filmou esta sequência, usou várias técnicas para salientar o negro e o efeito tremelicante dos próprios créditos
Também fora dos Estados Unidos se encontram grandes sequências que abrem filmes. Uma que me ocorre sem pensar muito é a de Les parapluies de Cherbourg, do francês Jacques Demy. O realizador construiu a carreira em torno do romantismo no cinema, muitas vezes expresso em musicais, e na sua obra mais conhecida, o genérico é uma delícia. Num plano que começa por enquadrar a cidade portuária que dá título ao filme (um pormenor importante na história), o que se segue é um desfilar de guarda-chuvas de várias cores, coreografados com o pano de fundo de uma calçada de pedra. Coreografado por Jean Fouchet e acompanhado por um belo tema composto por Michel Legrand, é em simultâneo uma homenagem ao clássico musical norte-americano Singing in the rain e uma celebração da beleza das coisas simples e também das emoções fortes.
A opção pelo plano único marca também a melhor sequência inicial da carreira de Scorsese, e um dos momentos mais altos da História do Cinema. Abre Raging Bull, obra suprema sobre culpa, ferocidade e a vida como chapa gasta. Soam os acordes iniciais do Intermezzo da ópera Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, e a escuridão do ecrã liberta a poderosa imagem de um ringue como uma jaula, onde um animal, talvez o touro enraivecido do título, executa uns socos em câmara lenta, caminhando de um lado para o outro, ansioso, coberto por um roupão. A névoa do fumo de cigarro envolve-o, flashes de máquinas fotográficas acossam-no e rodeando esta prisão, filas indistintas de espectadores. Tudo isto num preto e branco fantástico, usando a celestial composição de Mascagni num contraditório da raiva do boxe. Quando perguntaram mais tarde a Scorsese qual era a imagem mais emblemática do seu cinema, o nova-iorquino não teve dúvidas e escolheu esta, que é, em simultâneo, tudo o que precisamos de saber sobre o que Raging Bull tem a dizer.
Mais do que estabelecer o tom de um filme, uma sequência inicial pode contextualizar o argumento, seja com informações históricas ou narrativas. Tal pode ser conseguido de forma brilhante, seja através da crónica histórica do Médio Oriente no século XX no começo de The Kingdom; a contextualização da Los Angeles dos anos 50 de LA Confidential ou a estilizada e agitada introdução dos principais personagens de Snatch, de Guy Ritchie. No entanto, e porque dificilmente algo seu aparecerá num destes top 10, é difícil superar a brilhante entrada em Watchmen, a adaptação de Zack Snyder a partir da obra seminal de Alan Moore. Usando The times are a-changin’, de Bob Dylan, percorre a história dos Minutemen, um grupo de heróis que antecede os homónimos que dão título ao filme, e pelo meio, apresenta uma história alternativa do mundo. Tudo num slo-mo (falamos de Zack Snyder, com fotografias em movimento detalhadas, pequenos pormenores de quotidiano como um polícia e observar o decote de uma super-heroína enquanto esta é fotografada por jornalistas) ou mesmo de cultura popular (um dos Minutemen salva os pais de Bruce Wayne). Snyder apropria-se de momentos históricos do século XX norte-americano e estabelece tensões, costumes e motivos que servirão a história do filme. Tudo isto com um impecável estilo e, surpreendentemente, sobriedade imagética.
Sequências de créditos podem ser também máquinas de fazer rir. Há comédias que estebalecem, desde logo, o seu sentido de humor desde o começo, e quando bem feitas, quase são curtas-metragens humorísticas tão boas ou melhores do que aquilo que se segue. Desde todas pertencentes à trilogia Austin Powers, passando pelo tema demasiado Beach Boys sobre surf e tiro aos pratos de Top Secret, ou os delírios de Terry Gilliam em The meaning of life. A minha escolha, não havendo a regra das franchises, seria a icónica abertura de The naked gun. No entanto, este top não fica mal servido com o início de Zombieland. Subvertendo um recurso estilístico mais ligado à acção, a câmara super-lenta, o filme estabelece desde o início que mais do que criaturas de terror, os zombies são empecilhos à vida quotidiana, onde os mortos vivos atrapalham coisas tão corriqueiras quanto casamentos, idas ao clube de strip ou jogos pai-filho na escola, Tudo isto ao som de For whom the bell tolls, dos Metallica. Delicioso gore e divertidamente negro.
Muitas vezes, este tipo de sequências estabelecem um personagem de uma maneira mais elaborada que de Raging Bull. Em Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, a obra delirante, inventiva e certeirinha nos alvos do coração de Jean Pierre Jeunet, os créditos seguem uma pequena introdução do filme e fixam logo, em pequenos momentos de alegria infantil, o mundo mental da protagonista: amante dos pequenos prazeres, criativa no quotidiano e uma solidão que despoletará muitas das intrigas do filme. Tudo isto ao som da encantadora banda sonora de Jean-Pierre Jeunet e filmado com um tom quase de technicolor fantasioso de Bruno Delbonnel. É simples e, no entanto, existe lá dentro um mundo.
Antes que nos acusem de sermos racistas, algo que até foi lançado contra o filme anterior, destaquemos um dos filmes fundamentais do movimento afro-americano: Do the right thing, de Spike Lee, abre com uma mulher, a actriz Rosie Perez, dançando. Ao som de Fight the power, dos Public Enemy. Podia ser simplesmente isto, mas é um acto que condensa logo toda a importância e temática desta obra: a estética, o movimento, o cruzamento perfeito da emancipação negra e do cinema. Fã de musicais, Lee quis que Perez dançasse defronte da projecção de imagens de Brooklyn, onde decorre a acção do filme. O espectador quase consegue sentir de imediato o calor do dia que aí vem…
Começámos com Saul Bass. Terminamos com a prova de que este notável artista continuou a inspirar outros depois da sua morte. Catch me if you can, de Steven Spielberg, é old school de várias maneiras, desde a banda Sonora jazz de John Williams até à evocação dos anos 50 e 60. A sequência de créditos reflecte esse espírito, e o título do filme, num jogo de gato e rato entre duas personagens. As linhas são estilizadas, as transições entre segmentos inventivas e fluidas, o ritmo simplesmente perfeito. Começa com a perfeição do mundo de um homem habituado a enganar, até se dissolver revelando a sua verdade mais negra e escondida. Desenhado pela equipa francesa Deygas/Kuntzel, é a prova de que uma ideia boa é clássica e não ultrapassada. Como as grandes aberturas que aqui recordámos, o que interessa, sempre e eternamente, é o Cinema.