Reportagem


Patrícia Martins e Michael Pattman

Um ponto de cisão entre o universo de Stockhausen e a nossa própria realidade

gnration

12/10/2018


© gnration

A sala teve uma lotação máxima de setenta e sete pessoas, e ao centro da plateia, tal como havíamos falado na quarta-feira anterior, estaria alguém responsável pela distribuição espacial do som — o que, pelo menos nos espectáculos a que assisti no gnration, foi inédito. A sê-lo, faz sentido que aconteça com Stockhausen: o compositor alemão ocupa um lugar de destaque no panorama da música clássica e/ou experimental, fazendo a ponte entre uma certa música “antiga” e a moderna, muito isto se devendo ao papel que desenvolveu junto dos sons de origem electrónica: basta pensar nas suas experiências algo arcaicas com fita, e das quais é belo exemplo a peça Kontakte, ou na carinhosa atribuição que se lhe incute na génese do techno (embora, suspeitamos, o achasse um estilo em nada sofisticado).

No entanto, a primeira peça que se escutou na passada sexta-feira, na blackbox do gnration, foi inteiramente acústica: com Patrícia Martins ao piano, uma intensa performance de sons de uma origem concreta — o piano — mas desligados entre si pelo menos na melodia e no ritmo, duas das características basilares da moderna música ocidental. E talvez por isso seja tão apropriado preliminar a Telemusik e Kontakte, que aprofundarão a jornada auditiva cada vez mais distante dos trâmites composicionais a que nos habituámos.

São sons governados por uma espécie de independência entre si, em constante oposição; e, quando interpretados pela pianista, vêm munidos de uma emoção que julgávamos ser impossível existir na imponência formal da composição.

Para Telemusik, a pianista sai de cena e é projectado um círculo no centro do palco; irrompe um tinido agudo, e apercebemo-nos que será uma peça sem intérpretes, ao contrário do que acontecerá, mais tarde, em Kontakte. Esta é uma obra curiosa no âmbito geral do trabalho de Stockhausen, dada a aproximação muito concreta, através dos vários field recordings, com o nosso mundo real; e na pluralidade dessa missiva ecuménica Stockhausen aproxima-se de nós, e a música torna-se substancialmente mais acessível. Aqui, há vários segmentos, de origem instrumental, manipulados largamente da reconhecibilidade à abstracção e vice-versa, técnica agora tão difundida que a ouvimos desde o rock industrial ao hip-hop mais recente (que é, de resto, o género onde têm acontecido as coisas mais interessantes); assim de repente, podemos pensar em William Basinski (na relação com a fita), ou em Kink Gong (a natureza e a nossa história); mas não só. Embora predominantemente abstracta, há a possibilidade de lhe projectarmos uma natureza muito humana, e esse é possivelmente uma das maiores valências desta peça de Stockhausen.

O segmento mais longo é Kontakte, que existe primeiro como uma peça independente — um compêndio de várias experiências electrónicas que corre, em gravação, durante cerca de meia hora — para mais tarde ter sido complementada com instrumentação para dois intérpretes, com recurso a um piano e a uma longa parafernália percussiva. Enquanto a fita progride, é vê-los em constante frenesim dum lado ao outro, Patrícia mas sobretudo Michael Pattman, e todos os pequenos instrumentos dispostos à sua roda, e a minúcia que o leva a escolher apenas duas das mais de quinze baquetas, num movimento que repetirá incontáveis vezes ao longo da música; perguntamo-nos como é possível não se perderem a meio de tamanha algazarra, num vai-e-vem musical aparentemente caótico (é ordem no caos ou vice-versa). 

Se Telemusik convidava ao fechar de olhos para a imersão auditiva, Kontakte, na sua valência de também espectáculo cénico, não o permite; há algo de fascinante na tremenda actividade levada pelos dois. Na imensa presciência do compositor alemão, até faz pensar que previu uma certa corrente da música como entretenimento visual — porque, caramba, o clímax de Kontakte deve ter feito inveja ao Dunkirk do Nolan —, embora tenha ficado a sensação de que a peça fica transfigurada, e não complementada, com a presença da percussão e do piano: e por isso se recomenda a escuta da fita por si só, numa outra altura.

O final do concerto é um ponto de cisão entre o universo de Stockhausen e a nossa própria realidade; habitámos o primeiro durante largos minutos, experiência singular e que poderá abrir portas a uma compreensão mais profunda do fenómeno acústico que tanto nos fascina.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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