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“Idiossincrático”. Eis um adjectivo desgastado pelo uso nestes tempos em que tudo o que é bicho-careta se quer distinguir dos demais, mas sempre pela negativa e pela falta de gosto. Porém, há quem tenha emergido e estabelecido uma carreira relevante, com nova mundividência nesse mundo imenso (e confuso) dos cantautores da música independente – que muitos nos têm visitado. De entre estes conta-se Kurt Vile.
Natural de Landsdowne, na Pensilvânia, terra essa que já nos deu Steve Gunn (ele próprio antigo membro da banda de Vile) e que se situa na órbita cultural de Filadélfia – metrópole que nos deu os The War on Drugs de Adam Granduciel, de que Vile foi membro fundador e que também fez parte da banda deste. Entre abrirem os concertos uns dos outros até às primeiras edições foi um pulo e a partir daí lançaram as respectivas carreiras. Desde a estreia com Constant Hitmaker (Woodsist, 2008), Vile tem percorrido os caminhos do lo-fi, da folk e de uma sonoridade que se aproxima do heartland rock, com um timbre próprio de cantautor. Entre colaborações (com Courtney Barnett) e LPs e EPs, o sósia de “Weird Al” Yankovic tem sido do mais prolífico que se vê por aí.
Só nos últimos sete anos, Kurt Vile veio a Portugal uma mão-cheia de vezes; só nesta quinta-feira passada actuou duas vezes em Lisboa. Em aperitivo no Chiado, deu-nos uma declaração de amor e um “heyo” de saudação e cinco canções (e convívio com os adeptos), incluindo “Pretty Pimpin”, “Dust Bunnies”, “Bassackwards” e “Loading Zones”. Andor até ao Braço de Prata pelas 22h00.
Abriram a noite Meg Baird e Mary Lattimore, amigas de Kurt Vile – guitarras e uma harpa recebendo o público com um abraço terno. Se numa corre a folk no ADN (membro de Espers, Heron Oblivion e familiar de Isaac Greer), na outra, sósia de Elisabeth Moss, casam-se a música clássica com a popular. De disco pronto a sair (Ghost Forests; Three Lobed Recordings), deram-nos uma amostra do que aí vem: acordes esparsos na guitarra, o dedilhar na harpa a ditar a textura e a voz angelical de Baird a encimar um concerto que bem poderia ser uma canção de embalar de meia hora (é elogio, atenção) para adultos. Pelo que se ouviu, foi um bonito e válido motivo para seguir o encontro de ambas – uma pena que alguns imbecis das filas de trás armados em papagaios tenham estragado a envolvência que se exigia. Se nos lerem: fiquem em casa ou cortem a língua.
O grande círculo de amigos de Kurt Vile mostrou-se com a entrada em palco: cabeludo como Joey Ramone, falsamente lânguido e nunca tenso com nada salvo com os diálogos travados com as suas guitarras e pedais. Há um belíssimo Bottle It In (2018; Matador) para apresentar, mas também um corpo de trabalho invejável que tem tantos pontos altos quanto guitarras e banjos tem Vile nas suas hard cases.
Sejamos peremptórios: Loading Zones, que teve honras de abertura, é já um clássico de Kurt Vile. Ele e os seus Violators estacionam de borla numa cidadezinha da folk psicadélica e temos obra feita. Logo de seguida fazem marcha-atrás cronológica até ao gigante Smoke Ring for My Halo (2011; Matador) com Jesus Fever; agora numa versão mais sóbria, sem perder a graça nem o pendor psicadélico.
Tirando no tempo da bateria, Vile não tem pejo em dar largas à imaginação e se precisar de dez minutos para contar o que lhe vai na veneta, fá-lo. Bassackwards é disso exemplo (não único nesta noite). A sua letra é um monólogo tão Vileano numa metafórica sala de estar com umas cervejas y algo más e um humor melancólico tão seu: I was on the ground but looking straight into the sun, but the sun went down and I couldn’t find another one. Prolífico mas simultaneamente com narrativa de slacker, Vile oferece-nos novo clássico, para ser ouvido com um sorriso e num sofá confortável – enquanto se reflecte porque é que o Sol se perde por aí.
Já tardava uma incursão por Wakin on a Pretty Daze e ela deu-se com Goldtone. Versão superior à de estúdio, de percussão mais vincada e um refrão mais vigoroso, a sua letra corporiza o paradoxo prolífico/slacker de Kurt Vile: “I might be adrift, but I’m still alert, concentrate my hurt into a gold tone”.
A música de Vile, para além do seu humor e perícia técnica, encerra uma beleza única – melhor dizendo, idiossincrática. Runner Ups, cinematográfica até dizer chega (imaginem-na numa sequência de Paul Thomas Anderson ou em mais uma reflexão de Sorrentino sobre o envelhecimento), é de beleza inexpugnável: quem nunca se desiludiu com e perdeu amigos que atire a primeira pedra – ou que mije para cima da vida. Teremos sempre substitutos.
Parece-nos que nesta sua digressão em jeito presidencial (vota Vile ’18) apostou em trazer as suas músicas mais longas, como discursos monolíticos do que mais representativo tem a sua obra. Eis uma grande interpretação de Wakin on a Pretty Day; os Violators dão a base rítmica e parte dos arranjos (grande Rob Laakso) e Vile transforma, como só ele sabe, uma guitarra acústica numa eléctrica capaz de deitar abaixo todos os edifícios devolutos ali da zona.
Conforme cantou antes em Hysteria, os pormenores na sua música são tudo: a subtil mudança de melodia e o uso criterioso de pedais em Wakin… ou os seus trejeitos e saltos (e pontapezinhos à Elaine Benes) que remetem para um Joey Ramone contemporâneo, com uma reencarnação de Tom Petty na composição. “Idiossincrático” assenta-lhe que nem uma luva, tal como “fundamental”, que o actual cancioneiro de guitarras independente norte-americano não se constrói sem ele.
Se noutras canções ouvimos a influência de Bob Seger, nesta versão ao vivo de KV Crimes temos Lynyrd Skynyrd em barda, porque até na sweet home Philly podemos mascar tabaco e sacar uns riffs de bater o pé. A Skinny Mini de Vile é como a Skinny Minnie de Bill Haley (sempre o cancioneiro dos EUA): maluca até dizer chega mas a menos tempos do que a segunda.
Com Wild Imagination disse-se adeus e com Pretty Pimpin se voltou ao palco. Canção de topo de catálogo de Vile e Violators, imediatamente reconhecível (ao contrário do homem no espelho que Vile vê na letra) pela sua melodia e pela ginga de uma bateria boa desde o estúdio (Stella Mozgawa, pois então). A setlist previa o fim da picada com Baby’s Arms, mas a estupidez administrativa dos regulamentos autárquicos (só bestas quadradas e corruptas como as que têm ocupado os Paços do Concelho é que ordenam medidores de decibéis num recinto longe de residências) amputou-a de mais convívio com os Violators.
A felicíssima união entre as nuances da obra de Kurt Vile e a tradição do heartland rock e da folk traduziram-se num grande concerto. Se o artista chegou, mesmo ainda jovem, a uma fase da carreira em que é já frustrante a quantidade de canções boas que ficam de fora do alinhamento, o que foi tocado em palco deu para o gasto e para ver todos as pedras que compõem o imaginário Vileano, o de um grande escritor de canções e intérprete.
Não houve um solo que soasse mal ou um acorde mal jogado e foi possível assistir – lá está – à evolução de todos os pormenores que constituem a idiossincrasia da sua obra. Se é um ganzado ou se anda sempre cego pouco importa (até porque anda sempre atento, como bem canta), que as liras das musas transformam o trovador de voz de gato de Filadélfia num portento. Só faltou mesmo um banjozito.
No dia seguinte acordámos de manhã e reconhecemos ao espelho que foi um grande concerto, sem runner ups. Se for para isto, quereremos sempre ouvir os seus golden tones.