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Ao segundo dia, o número de palcos aumentou; e, com isso, a oferta e a ansiedade de querer estar no sítio certo à hora certa. O LeGuessWho? é um dos festivais que mais nos faz desejar possuir o dom da ubiquidade.
Uma das salas a estrear foi o StadsSchoenburg, um edifício grande, mas pacato, com um átrio descontraído, onde encontrámos vários jogos de tabuleiro e algumas pessoas a trabalhar; e foi este recinto a acolher, no seu Grote Zaal, a performance de Future Feminism. Entrámos já depois do começo, para uma sala alta e ampla, escura, inclinada como se fosse para cinema e na qual se projectava uma lua ao fundo do palco; e dada altura, sem sabermos muito bem como ou de onde, surge uma figura coberta por um pano, negro, que lhe chegava aos braços e lhe ocultava a silhueta. Dança enquanto se liberta; recolhe sobre si e expande logo de seguida. Ouvia-se algo sinistro, um registo demasiado processado e que era, de certa forma, desconfortável. E sempre a lua, e sempre a dança; até que se levanta, vai ao computador que afinal esteve sempre em palco, e muda a faixa. A dança altera-se, há uma evolução na narrativa — agora dança com foices, abre os braços, em movimentos precisos, controlados. Não tarda, termina, e entram em cena mais duas artistas que substituem a anterior, vestidas como uma versão moderna das divas negras americanas; cantam, nem sempre da forma habitual, no que vem a desaguar no punk de guitarra estridente e vozes com mais potência que acerto, sobre a vida americana e etc.; ora, o espectáculo fica um pouco esquizofrénico devido à apresentação por parte de uma delas, mas é isso que lhe permite poder mutar-se tão facilmente entre performance audiovisual e rock à la Slits. No final, lêem-nos os treze mandamentos do seu movimento Future Feminism, alguns bem interessantes, e que discutiriam no dia seguinte, num debate aberto ao público do festival.
Nesse mesmo recinto, aconteceria logo de seguida uma outra performance que nos interessou, mas a prioridade foi regressar à base — o TivoliVredenburg — para o concerto de serpentwithfeet. É dele um dos mais bonitos discos de 2018, soil, no qual canta, com uma devoção que lhe vem da íntima ligação que teve com a música religiosa, gospel e soul, um amor plural, intenso, universal, até, no seu âmbito. Mas o tempo da viagem, mais a longa fila que se formou para o poder ouvir à porta do palco Pandora — tememos não conseguir chegar a tempo. Quando chegámos, estava a sala a meia-luz; e ao piano, Josiah Wise improvisava as suas próprias canções — por exemplo, a belíssima bless ur heart -, em registo desprendido, com vários adlibs improvisados nos entretantos dos seus versos; e quando, de vez em quando, punha a tocar uma das outras faixas mais compostas (soil tem uma das mais entusiasmantes produções no campo do rnb dos últimos tempos), muitas vezes deixava o trabalho entregue à faixa gravada e adicionava-lhe, com candura e delicadeza, alguns floreados vocais. Saímos conquistadíssimos.
Neste dia de sexta-feira, houve algumas propostas que infelizmente perdemos: Jessica Pratt e Vashti Bunyan, ambas com o aval de Devendra Banhart, tocaram consecutivamente na Janskerk — e se já vimos a primeira, há uns anos e a propósito do seu disco On Your Own Love Again, a segunda foi uma belíssima oportunidade perdida e pouco provável de se repetir nos próximos tempos. É uma mágoa a carregar, embora atenuada pelo facto de termos podido assistir ao concerto de Howie Lee, no Theater Kikker. Conhecemos-lhe o disco de 2015, Mu Che Shan Chu, no qual apontou a paisagens digitalmente articuladas, futuristas, com apontamentos de instrumentação tradicional asiática; algo que soa familiar mas estranhamente progressista, como se o vaporwave subitamente se deslocasse do kitsch para ser apenas vanguarda. Por isso, havia especial curiosidade para o seu espectáculo. Ao vivo, conta com um auxílio na parte visual, que parecia programada (ou pelo menos parcialmente) em tempo real, num estilo de animação colorido e tridimensional — como os motores gráficos de jogos de computador dos anos 90 —, que interagem com a música; e esta, por sua vez, é uma mistura exótica de percussão asiática, sopros, gongos e electrónica variada. Parte da música é interpretada pelo próprio Howie Lee, munido de um iPad no qual consegue invocar uma série de diferentes instrumentos, e chega, num ou dois momentos, a cantar de forma intensamente processada. Infelizmente, há uma parte da mensagem que se perde, por razões linguísticas — queríamos muito saber o que dizia quando, com estridente auto-tune, cantou por cima de uma animação em karaoke —, mas não foi condicionante suficiente para um dos concertos mais entusiasmantes do festival.
Acabaríamos o dia em breve; mas primeiro, JPEGMAFIA. O rapper americano cimenta com Veteran um merecido lugar na primeira montra do hip-hop experimental e inclassificável, levando as suas rimas a beats de estrutura fluida, como se as diferentes faixas do disco fossem vinhetas de ideias variadas e não canções de percurso canónico — e esse registo assenta-lhe na perfeição. Mal chega a palco, manifesta-se no público uma energia em potência; que irrompe, logo depois, ao soar do primeiro beat de Vengeance (faixa de Denzel Curry, com quem colaborou e a quem mandou um shoutout). Salta e corre pelo palco do Pandora, toma-o como seu território enquanto puxa um charro (que, já agora, supomos holandês), salta para o público e durante tudo isto dá às suas letras uma pujança impossível de representar em estúdio — a dada altura, logo no início, até se permite cantar parte de uma canção soul, uma sensibilidade que não lhe conhecíamos. A energia desmesurada não dura para sempre, dada até a admissão do próprio não ser capaz de convocar tanta stamina vocal, e enquanto, ofegante, descansa, somos convidados a imergir nos beats de faixas como Thug Tears, por exemplo, que se adorna de subtilezas que, ao vivo, nos envolvem mais; e nos lembram que Peggy é, além de uma máquina selvagem e animal de raiva, um produtor exímio a quem devemos estar atentos nos próximos tempos. Um pouco antes do final do set, saímos desta atmosfera pesada para apanhar o final do concerto de Roger Eno, de quem pouco ou nada sabíamos além do facto de ser irmão de Brian. Sentado ao piano, discorreu composições longas, serenas e contemplativas, pausando de vez em quando para conversar um pouco com o público, como um antigo amigo que há muito não víamos, ou requisitar que lhe desligassem todas as luzes da sala, tornando-se assim mais intimista. O cansaço do dia fez-se sentir; fechámos os olhos e fomos para onde Roger nos levou.
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)