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De repente, é fim-de-semana. E chove, portanto o início de dia está condicionado. Utrecht é uma cidade muito plana — como, aliás, deverá ser o resto da Holanda — e o transporte faz-se facilmente de bicicleta. É fascinante, e uma amostra do bom planeamento urbano, ver as ciclovias perfeitamente integradas na via pública e a organização dos cidadãos que se movem em hora de ponta. Neste dia de Sábado, os concertos começariam às 18h em dois locais distintos: na Janskerk, que já conhecemos, actuaria Kate NV; mas o De Helling, numa outra ponta da cidade, oferecia-nos, além de Ryley Walker & Kikagaku Moyo, a oportunidade de fugir um pouco às paragens habituais e conhecer mais da periferia da Utrecht central.
A falta de GPS, tanto quanto um terrível sentido de orientação, rapidamente nos fizeram perceber que o caminho não seria simples; até chegar ao recinto, passámos por zonas de habitação que ladeavam um dos canais de Utrecht, belíssimos jardins e passeios, local ideal para despender parte de um fim-de-semana não fosse a chuva intermitente e assertiva; quando finalmente chegámos, com estupefacção vimos tê-lo feito com uma hora de antecedência, pelo que nos convidámos a um passeio pelo circundante ao De Helling. Ao cabo de alguns minutos, reconhecemos o logotipo do festival num armazém, e entrámos num concerto barulhento, que hoje ainda não sabemos o que foi, que permitia deambular por entre as pessoas e o equipamento de projecção analógico, manuseado por duas pessoas que lhe alimentavam fita, e projectavam imagens neste palco improvisado.
Quando finalmente foi hora de Ryley Walker & Kikagaku Moyo, já duas filas, em direcções opostas, se formavam à porta do recinto, e logo entrámos num pequeno átrio que era antecâmara do recinto propriamente dito. E da parelha que se formaria em palco, apenas conhecíamos o trabalho do americano Walker, que, após o primeiro disco, carinhosamente aglomerámos na prateleira onde se destaca Astral Weeks, de Van Morrison; nada sabíamos dos seus amigos japoneses, além de reunirem um following entusiasta de há alguns anos a esta parte. O espectáculo que nos trouxeram parece ter sido amplamente baseado em improvisação; isto é, dentro de algumas matrizes pré-determinadas — como o drive à krautrock, por exemplo — embelezaram esta estrutura simples com adornos vários, entre cristalinos acordes na guitarra ou percussão cuidada. O resultado tem traços pastorais, até meditativos, mas não inteiramente, porque a energia inerente revela um crescendo que a todo o momento ameaça implodir sobre si própria.
Deixámos essa possibilidade em suspenso para regressar ao Tivoli. O primeiro concerto a que aqui assistimos foi de Alabaster dePlume, na sala Pandora, no qual o líder da banda abordou o público de forma directa, nos desejou tudo do bom e do melhor, sempre num registo tão fatela e eminentemente fabricado que nos ocorre pensar que viemos ao engano; foi assim, até percebermos que este é o início da performance, e que desaguámos sem atribulações na primeira canção. Segue-se uma curiosa mistura entre spoken word e música pouco ortodoxa, produzida a partir de uma banda de alinhamento convencional mas dirigida por um encantamento (inocente, pueril) como já não se vê na actual música pop; e depois, o concerto é alinhado a partir da visão particular de Alabaster dePlume, frontman e mentor do projecto, socialmente consciente e ciente da quebra da quarta parede. Caso se consiga imergir neste mundo, a permanência será garantidamente prazerosa.
Essa toada manter-se-ia no concerto seguinte de Saul Williams, um artista americano associado ao hip-hop, mas talvez na sua vertente mais poética e não tanto musical: na verdade, poderemos dizer spoken word sem demérito da sua obra. Este foi um dos concertos curados pela Moor Mother, e junta Saul Williams a King Britt, responsável pela electrónica, para uma colaboração inédita e não ensaiada, a que se deu o nome de Unanimous Goldmine. A figura de Williams parece uma referência visual a Matrix, com a sua longa gabardine negra e os óculos escuros; e as suas declamações, ora lidas a partir de um dos vários livros que parecia dispor ou recitados pelo que julgamos ser memória, vêm investidas de uma espécie de presciência, ou distanciamento, a condizer com o futurismo messiânico a que lhe associamos dada a vestimenta. Os temas a que se atira são vários, mas sempre sob o âmbito da insatisfação social ou existencial — é desta forma que se atira ao consumismo, às estruturas capitalistas, às drogas, à apatia, ao nivelamento por baixo da espécie humana. Williams é como um padre que prega o sermão aos seus súbditos de uma forma tremendamente eficaz; e estes respondem movendo-se ao ritmo que King Britt lhes impõe, uma presença que nunca se sobrepõe à poesia mas que a complementa e a eleva. Não ficaremos nesta missa durante muito tempo — a noite continua e há ainda muita coisa para ver —, mas, quando saímos, estamos crentes nesta visão idealista, e agora parte integrante duma massa dissidente e pronta para a revolução da espécie.
Pedalando, pedalando a avenida a norte do Tivoli, até chegar à praça que se associa aos estudantes universitários; passar o cinema, à esquerda, seguir em frente numa rua estreita pedonal até que, à direita, temos o Theater Kikker. Aqui veríamos Eli Keszler, que editou este ano mais um disco numa já respeitável série de trabalhos que vem desde 2007; entretanto, colaborou também com Oneohtrix Point Never, Laurel Halo ou Oren Ambarchi, pelo que é uma espécie de recurso percussivo a quem muitos recorrem. A seu dispor, teve apenas uma bateria e um computador.
Stadium é o nome do seu novo disco, que supusemos ser o mote deste espectáculo, um conjunto de narrativas rítmicas sobrepostas a outros apontamentos melódicos (um sopro, breves linhas de sintetizador, tudo paisagens muito minimais). Vê-lo em acção é fascinante: as suas mãos operam a velocidades que não julgávamos possíveis, e constrói ritmos meticulosos, discretos, que inicialmente sugerem fazer parte de uma linha de continuidade para então bruscamente se converterem a outra coisa qualquer. Por vezes, parecia que todos os sons produzidos provinham da bateria de Keszler: vimo-lo a mexer numa superfície que, quando percutida por cima de um tambor, produzia um som mais longo, acusticamente mais preenchido do que apenas a batida seca; soava como uma corda de contrabaixo, mais breve. Mas noutras vezes, fazia acompanhar-se de uma faixa pré-gravada que induzia alguns contornos melódicos a construcções puramente percutivas. É um portento técnico que nos convida a reflectir sobre ritmo e textura, a encontrar ordem no caos, ou, no mínimo, a interpretar o caos.
Antes de regressarmos ao Tivoli, passámos ainda pela Janskerk para uma das interpretações mais ambiciosas do festival: os Grandelavoix, grupo coral, entregar-se-iam às quatro horas de Tenebrae Responsoria, obra composta por Carlo Gesualdo no século XVI. Fomos à escuta por uns breves momentos, sobretudo para presenciar a materialização de todo o fenómeno. A igreja já não estava, tal como no concerto de Colin Stetson, interrompida a meio do seu comprimento para albergar o palco; desta vez, seis corredores de filas de cadeiras, três de cada lado, corriam todo o longo da estrutura, e ao fundo uma única voz cantava sem amplificação, gesto que ressoava naturalmente e chegava a nós mais encorpado. Assistíamos a isto no início do corredor; pois mal então desaparece o primeiro intérprete, logo surge um grupo de quase uma dezena de vozes, mais próximos de nós, que se lançam à música. Cantou-se latim, dirigidos apenas por um maestro, em música construída apenas pela voz.
Disso a propósito, um pouco mais tarde começaria na sala Hertz uma colaboração entre Ian William Craig e Daniel Lentz, sugerida pela RVNG Intl., editora que tem firmado o seu lugar na música electrónica e experimental. Já conhecíamos o primeiro de andanças em nome próprio, ele que teve treino formal de canto mas que, na sua música, justapõe essa tradição antiga com as falhas da tecnologia moderna. Nesta colaboração, Ian servia-se de um microfone e de uma extensa parafernália electrónica; Daniel Lentz ficou apenas encarregue do piano. O que se seguiu foi um curioso diálogo entre ambos. Várias vezes o primeiro se serviu das melodias do segundo, gravando-as em cassete para logo depois as reproduzir e manipular a partir da fita. O registo é interessante; a partir da manipulação electrónica, é possível tanto a acalmia como a produção de paredes de barulho, e esperamos sempre o momento, tão reconhecível na obra de Ian William Craig, em que o som esbarra no seu limite de expressão e se desintegra, e com ele a voz, no universo das possibilidades electroacústicas.
Pelo meio, saltámos o concerto de Devendra Banhart, que vimos apenas de passagem em apoteótico momento rock — a ele que sempre o preferimos tímido e pastoral —, que ameaçava ser o grande destaque de Sábado não fosse a bizarra proposta dos Sons of Kemet, de Shabaka Hutchings, em formação XL. Shabaka foi responsável por parte da programação deste festival, créditos que incidiram principalmente na música africana ou de sua inspiração. Sem saber o que ao certo esperar destes Sons of Kemet, deixámo-nos estar; preliminarmente ao concerto, DJ Noss animava as hostes num set que acertou em cheio dadas as circunstâncias. Sem surpresa, dada a forma como se organizou o alinhamento, a sala Ronda estava à pinha; mas rapidamente se descobriu espaço para mexer mal a palco subiram os músicos. Ora, o XL em Sons of Kemet são os quatro bateristas que se juntam a esta formação, havendo mais um músico na tuba e Shabaka ao saxofone, e cedo se confirma que o exagero não resultou numa saturada cacofonia; os quatro bateristas, perfeitamente sincronizados, exploram dentro do mesmo ritmo diferentes liberdades, e não fosse o seu som possante o suficiente, há ainda Shabaka, que conduz a festa ao som de melodias simples, não necessariamente previsíveis, mas que também não primam pela inovação: são eficazes, e põem esta locomotiva a mexer. No fundo, o mote é esse: mexer, mexer muito, e mexer com força.
Até ao final da noite, ainda passámos por Nicole Mitchell, trompetista, que veio a convite de Moor Mother, e com quem assinou a actuação. O concerto atrasou-se um pouco, justificado por Nicole dadas as circunstâncias inéditas desta colaboração, e, quando começou, percebemos que não foi registo habitual para a primeira. Se, de facto, tinha a sua trompete consigo, dela se serviu apenas amiúde; a maior parte do que se ouviu proveio de samples prévios, field recordings, aos quais se junta a poesia de Moor Mother em torrencial stream of consciousness, que pode também manipular através de um aparelho que mantinha perto de si. Assim, a linguagem do jazz apareceu só de tangente, ou mesmo intuída nos sons que não lhe são imediatamente associados, para um dos concertos mais estimulantes da noite. Este terceiro dia foi dominado pelo jazz e pela palavra, e este último concerto sintetizou ambos na perfeição.
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)