Entrevista


black midi

É preciso escutar o que os outros estão a fazer, e adaptar consoante.


© Dan Kendall

Há já alguns meses que um nome se repete pela internet fora. Lêem-se coisas como “eles são incríveis ao vivo – vão vê-los!”, ou “são o que de melhor há com guitarras” — mas dificilmente se saberia quem são eles ao certo, estes tais de black midi que, aparentemente, dão muitos mais concertos do que informação sobre a banda. Multiplica-se o hype, sem que se satisfaça a curiosidade, e após um primeiro concerto em Portugal – no ano passado, em Guimarães, a propósito do Mucho Flow -, voltam para duas datas: uma, no Vodafone Paredes de Coura, e, em Setembro, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.

Já era nosso desejo tentar encontrá-los no festival para uma entrevista, mas antecipámo-la, e falámos com Geordie Greep através de uma (a espaços faltosa) chamada por WhatsApp; ele é guitarrista e vocalista, e um dos quatro muito jovens músicos que compõem os black midi.

Primeiro, eram apenas Geordie e Matt Kwasniewski-Kelvin, que se conheceram na BRIT School, uma escola artística para miúdos dos catorze aos dezoito anos; foi lá que, além de ouvirem coisas juntos – “Swans, Boredoms, Godspeed You! Black Emperor”, relembra Geordie – encetaram as primeiras experiências musicais. “Achámos incrível como [aquelas bandas] conseguiam tocar durante tanto tempo, de forma a que, quando os ouves, ficas numa espécie de outro mundo — uma outra zona de energia”. Foi o mote para que Geordie e Matt tentassem emular esse espaço transcendental em longas jams; mais tarde, juntar-se-iam o baixista Cameron Picton e Morgan Simpson, portentoso baterista de recursos infinitos. Será apenas com estes dois que chegarão ao formato de canção.

Retrocedamos um pouco para que se possa estabelecer um ponto prévio, fundamental para entender o fenómeno black midi. Ter-se-ão formado no final de 2017 e, em 2018, lançaram apenas um single, chamado bmbmbm (lê-se boom boom boom); e além das várias actuações que foram surgindo entretanto no YouTube (muitas no Windmill, em Londres, além de outras com as rádios NTS e KEXP), lançaram uma surpreendente gravação em duas partes de um concerto com Damo Suzuki (dos lendários alemães Can), também no Windmill. Fica a questão: como é que tudo isto foi possível?

fotografia de Jack Greely Ward

O Damo Suzuki tem uma cena na qual vai a várias cidades, e toca com os músicos locais num regime de improvisação. E ele toca bastantes vezes no Windmill, talvez uma vez por ano. E quando ele ligou para lá no ano passado, disse que queria ir lá voltar, como já lá tocávamos há algum tempo, ele perguntou-nos se queríamos ser a banda para essa noite”. Obviamente, os miúdos aceitaram, embora com os naturais receios: “estávamos muito entusiasmados, mas também nervosos: o que aconteceria se simplesmente bloqueássemos a meio do concerto?”

A linguagem da improvisação está naturalmente presente no grupo, desde as primeiras experiências exploratórias entre Geordie e Matt, e aprimoraram-na com a entrada dos outros dois. “Para tornar a improvisação possível, tens que te apoiar em ritmos e frases repetitivas – às vezes, em detrimento do resultado final” — Geordie vai explicando como tudo se processa, e revela, neste domínio, uma maturidade artística (e até intelectual) rara num grupo destas características —, “coisas a que os outros se possam também agarrar. E tens que aprender a não te agarrar muito às tuas ideias também. Muitas vezes acontece, na má improvisação, que alguém tenha uma ideia qualquer e continue com ela, independentemente de alguém se agarrar a ela ou não. Por isso, é preciso pensar: se ninguém se agarrou à minha ideia, é porque não é boa, ou, pelo menos, não é relevante nestas circunstâncias. É preciso escutar o que os outros estão a fazer, e adaptar consoante”.

Mas então, recordávamos nós, estes quatro miúdos entrariam em palco com Damo Suzuki, sem nenhuma ideia do que poderiam tocar para o integrar ou para onde o japonês os levaria. Para qualquer outro grupo no mundo, este seria material para pesadelos: estar num palco com uma das maiores lendas da música moderna, sem ter qualquer tipo de plano para os momentos seguintes. Felizmente…

fotografia de Dan Kendall

“…correu lindamente! Mal entrámos no palco, com aquela tensão de ter que tocar algo bom, e ter este gajo que actua de uma forma intensíssima — muitas vezes, as pessoas são algo tímidas a improvisar, e pensam algo como “vou esperar que chegue a minha vez” — mas o Damo… ele não queria saber. Desde o início, estava totalmente imerso, a fazer a cena dele. E, por isso, correu muito bem. E foi um concerto muito frutífero! É curioso, porque muitos dos riffs que temos no disco vêm desse concerto. Achámos que resultaram tão bem, que os transpusemos para as canções. E, por isso, há várias pessoas que ouvem essa improvisação agora e pensam “os black midi não estão a improvisar, estão só a tocar as cenas deles!“; mas na verdade, é precisamente o contrário”.

Será apenas em Junho deste ano que editam Schlagenheim (que, a propósito, não significa nada), pela Rough Trade. Os princípios da curiosidade plural, incutidos pela docência da BRIT School, poderiam ser o pilar de Schlagenheim: tudo parece encaixar aqui, num resultado que é violento e desconcertante, pelo seu groove arrítmico e canções de estrutura modular. Logo na primeira canção, 953, arrebate-nos um intrincado instrumental, norteado tanto pelas guitarras, onde figura um riff distintivo, como pela endiabrada e hiperactiva percussão, e somos recordados de uma vária linhagem do rock que não acreditaríamos ainda ter um futuro. Cabe tanta coisa nesse primeiro minuto e meio, exposição exibicionista, e até masturbatória, de garra e virtuosismo, que não haverá muitos outros que tenham o fôlego destes meninos para, depois de tudo isto, ainda haver o resto do disco pela frente.

Ao longo de tudo isto, Geordie há-de cantar num estilo desembraiado que recorda a loucura de Mark E. Smith ou a atitude colegial de Stephen Malkmus (e de tantos outros que faltaria enunciar). Há um estilo narrativo que dá personalidade a um disco excessivamente formalista por vezes, e os melhores resultados obtém-se em Near DT, MI, onde canta, presumimos, sobre a contaminação da água em Flint, Michigan; bmbmbm também é memorável, com mais estilo que conteúdo, e tudo culmina, como síntese do registo de Geordie, em Of Schlagenheim. É um ávido leitor, e menciona a egrégia obra de Proust, assim como Petersburgo, de Andrei Bely, como algumas leituras prediletas. Mas no domínio da música, “não presto muita atenção às letras; na maior parte das vezes, acabo por reagir mais às coisas que são algo engraçadas, como Frank Zappa, por exemplo, ou coisas que tenham mesmo boas letras, como a Joni Mitchell, ou assim”. A alusão a Zappa é curiosa, porque há, definitivamente, elementos em comum na atitude de ambos, mas os contorcionismos vocais de David Thomas, dos Pere Ubu, também poderiam ser uma referência.

Eu nunca quis cantar, nem ser um cantor. Simplesmente… no meu tempo livre, escrevia sempre umas coisas, e assim — não porque achasse que seria algo bom a fazer, ou fosse algo pelo qual tivesse particular paixão — mas não conseguia realmente evitá-lo. E então, achei que seria uma patetice que outro de nós o fizesse [cantar na banda], e eu teria sempre muito a dizer sobre a forma como o fariam… e então, a dada altura apercebi-me que este poderia ser um veículo para fazer as letras, e as vozes, e tudo isso. E aconteceu gradualmente. Quando começámos a fazer os concertos, isso já estava definido”.

trabalho gráfico de Anthrox Studio

Os espectáculos ao vivo levantaram a curiosidade, e Schlagenheim confirmou as suspeitas: os black midi são um fenómeno da música moderna e vieram para ficar. Em particular, construíram-se partindo unicamente do trabalho feito, e do passa-palavra que foi, apesar de tudo, impulsionado pela imprensa. A sua presença nas redes sociais é limitada, e, também ela, dotada de muita personalidade; e enquanto muitos questionam a estranha rápida ascensão do grupo, Geordie garante que nada foi excessivamente planeado: “Não queríamos algo que fosse “demasiado”, ou postar muita coisa no Facebook, ou assim. Nunca foi uma decisão de PR consciente. Na altura em que começámos, focávamo-nos simplesmente em fazer canções melhores, e que os concertos fossem melhores também, e ter novas músicas todas as semanas, mais do que ter uma boa estratégia de comunicação, e parecer misterioso ou algo do género. Se houver menos a acontecer, há menos probabilidade de dar errado, não é? Foi uma forma muito simples de fazer as coisas”. Esta atitude, de fazer antes e mostrar depois, distingue-os de uma nova forma de se tornar artista no século XXI, que consiste em mostrar o bling e alavancar-se a partir daí, gerindo a carreira em função de uma dualidade de trabalho e imagem pública.

Talvez o próprio género onde se movimentam não permitisse essas veleidades. Ao ouvi-los, e não obstante a forte costela improvisacional do grupo — que lhes escancara as portas para outros géneros, numa liberdade infinita — eles são rock até à espinha, e é uma herança que carregam com gosto. Segundo Geordie, “a música rock, a música rock ao vivo, tem sido bastante entediante desde os últimos vinte anos, ou assim. Vinte, trinta anos. E mesmo que os instrumentos sejam tocados ao vivo, mais valia não o ser, porque a forma como tocam é muito robótica”. Já os black midi não se prendem ao disco, e é comum vê-los a começar uma canção, divagar pelo meio, enunciar uma outra e depois voltar para terminar a primeira. “Penso que há gente – onde talvez nos incluamos – que faz música com um certo elemento de perigo e energia, que não se pode obter doutra forma que não ao vivo. E acho que as pessoas gostam disso. Não sei se estamos no mainstream. Vamos ver. Fala-se muito do futuro e do destino da música rock e da música de guitarras…vamos ver”. Numa tirada humilde e que os direcciona para além do rock, Geordie não considera que estejam a “carregar a tocha do rock, nem da música de guitarras. Não estamos interessados em pertencer a algum género, ou movimento – move-nos apenas o desejo de fazer boa música”. O presente é totalmente deles, que são um dos maiores talentos em bruto da música mais recente. Quanto ao futuro… vamos ver.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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