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Chamam-lhe a poetisa do punk, a madrinha deste e mais umas honrarias que, parece-nos, dispensa. Não precisa delas, é uma mulher livre que primeiro existiu e depois cantou o que existiu. Nasceu em Chicago, coração do Midwest, trabalhou numa fábrica de carrinhos de bebé, teve um filho que deu para adopção e nunca deixou que a vida lhe esmagasse as ambições e a tornasse em mais uma ovelha, igual à esmagadora maioria das pessoas.
Viveu e amou (na medida do possível, atenta a natureza das coisas) Robert Mapplethorpe e Fred “Sonic” Smith, com eles partilhando talento e deles retirando inspiração e pujança artística que lhe seria estruturante. E, bem, acabou em digressão e edição durante quatro décadas chegando, aos setenta e dois anos de idade, à vila de Paredes de Coura, neste ano que viu outra grande senhora daquela geração, Grace Jones, visitar-nos e dar showzaço.
Se por influência do local ou não, Patti Smith e sua banda – onde pontifica o amigo e fulcral colaborador de sempre Lenny Kaye – trocaram as voltas à setlist habitual e entraram com tudo em People Have The Power, hino de férreo optimismo que nunca perdeu o seu fulgor, seja na versão de disco, seja ao vivo. Havia já comunhão entre Patti Smith e o público, como na canção há comunhão entre o cabedal punk e o patchouli hippie.
O concerto seria fértil em versões de gente da sua geração. Logo ali, uma Are You Experienced? de Jimi Hendrix. Até agora estamos experienciados, tia Patti – fazendo um pirete a Trump, nesta canção, segundo a própria, sobre união. Mas também fazemos um pirete a uma versão completamente dispensável de Beds Are Burning dos Midnight Oil, que não só não acrescenta nada como ainda rouba espaço na setlist à obra de Smith. E porque, ao nosso lado, era confundida com It’s My Life dos Bon Jovi (!).
Alguma da euforia de palco de Patti Smith é, bem, um exagero. Menos mal, que é alguém da geração dos anos sessenta que não destruiu o Ocidente, como tantos da época. Continua a acreditar fervorosamente na paz e na união, como uma boa tia que nos explica que cabelos brancos podem não ser só da idade, mas também da saudade, como diria outro tio, o Alfredo Marceneiro. Assim se desenrola Ghost Dance, optimista até dizer chega ao cantar que viveremos outra vez, apropriada para quem, como Patti, viveu e trabalhou num Rust Belt em declínio e sem esperança.
Patti Smith evita o ecopopulismo prepotente e parolo das “””elites””” – vide o recente caso Elton John/Príncipe Harry/Meghan Markle. Antes pega inteligentemente em mais uma versão, After the Gold Rush de outro tio, o Neil Young, e canta-a com alma e coração radiosos. A Mãe Natureza, a noção e os nossos ouvidos preferem isto a adolescentes histéricas e manipuladas em barquinhos, até porque é bem mais bonito.
A tia Patti veio mesmo para manter os nossos punhos erguidos no ar em júbilo por estarmos vivos e ali, celebrando a sua obra e a de outros tios de renome em Beneath the Southern Cross, mesmo daqueles que já não estão cá, porque só se morre definitivamente quando se é esquecido. Perdoem-nos os puristas de Because the Night, mas o momento da noite é definitivamente este. O público percebe a solenidade e temos uma procissão, não das velas, mas das lâmpadas do patrocinador.
Smith canta a dialéctica entre carne e espírito e presença e vazio (“Oh To be, not anyone, gone, this maze of being, skin, oh to cry”) e também aqui consegue imprimir a sua vivência às suas canções. Com tanta emoção à flor da pele retira-se e deixa Lenny Kaye e companhia entregues à sorte de tocarem duas versões: I’m Free dos Rolling Stones (que já morreram e esqueceram-se de os avisar) e Walk on the Wild Side do tio Lou Reed (já morreu mas continua vivo). Esta última é banda sonora de festivaleiro a tentar atravessar a zona de campismo à noite sem uma lanterna, porque a noite é negra e cheia de personagens.
Regressa de chávena na mão (a tosse a isso obriga) e é uma força de combate lírico imparável, salvo quando tem um cabelo na boca. Luta contra “os Estados, as grandes empresas, as forças armadas” e proclama, daquele púlpito deveras amplificado, que seremos sempre livres, servindo esta comunhão cantora-público de associação de liberdade à la Proudhon. Comunhão essa que provocou coros entoando o nome de Smith, soltando-lhe uma furtiva lágrima e mãos no peito em agradecimento – decerto que já ouviu muito disto ao longo dos anos, mas Coura é Coura.
Duas canções de amor para a recta final: Pissing in a River e Because the Night. A primeira contou com toda a gravitas de Smith, sendo antecâmara para os acordes de piano da segunda. Nasceu da inspiração divina do Boss e até a segurança à entrada do recinto deve ter cantarolado o refrão.
Smith, teatral como Piaf, agarra-se a cada palavra sobre entrega e sobre a propriedade da noite e do coração como se o Mundo acabasse amanhã, sorrindo no fim como se tivesse cantado a canção pela primeira vez. Execução irrepreensível que fez tremer as árvores do anfiteatro natural, convidativo à alegria de cantora e banda. Depois do presidente dos afectos, a Patti dos afectos.
Se muitas versões de Smith não se equiparam aos originais, nunca se diga o mesmo de Gloria. Canção de que Smith se apossou e tornou sua, é o fecho ideal de concerto para um público completamente rendido e que aplaude a grande senhora do punk até à exaustão. Não sabemos se Jesus Cristo morreu pelos seus próprios pecados e não pelos de Van Morrison e Patti Smith, mas esta só quer que Ele não se preocupe muito com ela. Glória para a tia Patti e seus apóstolos, que mensagens de paz destas já não se usam, mas ainda entusiasmam. Continua a ser uma miúda formidável.
ALINHAMENTO
People Have the Power
Redondo Beach
Are You Experienced? (The Jimi Hendrix Experience)
Ghost Dance
Beds Are Burning (The Midnight Oil)
Dancing Barefoot
Beneath the Southern Cross
I’m Free/Walk on the Wild Side (Rolling Stones/Lou Reed)
After the Gold Rush (Neil Young)
Pissing in a River
Because the Night
Gloria (Them)