Reportagem


Battles

Vitória de uns Battles de peito feito no campo da honra

MusicBox

22/10/2019


© Ana Viotti

Vamos em 2019, anno qualquer coisa da era em que ouvir uma banda mais ou menos inovadora por mais de dez anos dá direito a um cínico “[nome da banda] em 2019?”, isto é, a um selo de regressão (quando não estagnação) de gosto. Se há banda que se tem mantido praticamente imune a esta sentença são os Battles, que em nove anos passaram de quarteto a duo. E, bom, depois de três anos longe de território nacional, voltaram para a primeira noite do Jameson Urban Routes.

Casa cheia para assistir ao regresso a Portugal dos generais-magos de Nova Iorque, com uma residência de Stanier por Berlim no meio, para mostra de Juice B Crypts (Warp, 2019). E uma advertência: um ataque frontal ao bombo de Stanier é equivalente a acidente de trabalho ou a uma explosão que faz tremer as costelas, transformando-nos em repórter de guerra.

Servindo o concerto de apresentação de Juice…, o início das operações deu-se com Fort Greene Park. Ouvida a versão de estúdio, dir-se-ia que os Battles estão naquela fase da carreira em que precisam de material antigo para se manterem relevantes e que o mais recente precisa de respirar ao vivo para se tornar interessante – um prognóstico pouco animador, portanto.

Certo é que a canção leva um pontapé de vitalidade com a instrumentação de Williams, que se assemelha a um piloto de B-2 a fazer as verificações antes de descolar e, claro, com essa bataria (com “a”, mesmo) de artilharia que é John Stanier. Ainda assim e estando perante o nosso terceiro concerto dos Battles em oito anos, sentimos que o envolvimento sonoro da manobra daquela força expedicionária ainda estaria para vir.

Com efeito, A Loop So Nice e os padrões de Stanier no prato de choque provaram isso mesmo: que a batalha começou a sério ali mesmo, sobretudo com a passagem para They Played It Twice e a harmonia da voz de Xenia Rubinos, presente em samples. Uns berros de aprovação do público puxaram por Williams, que não queria ficar atrás de Stanier e contorcia-se entre instrumentos – desta tensão tácita entre ambos começou a nascer uma excelente actuação.

Neste último álbum, os loops e os padrões dos Battles não são tão acentuados, dando lugar a certa profusão de arranjos relativamente complexos que ora remetem para um Red dos King Crimson, ora remetem para a no wave de uns Liquid Liquid. E é precisamente com o sample de voz de Sal Principato, vocalista daqueles, que se desenvolve uma espástica Titanium 2 Step, momento alto do disco (e do concerto), que colocou uma série de pescoços e ombros dos presentes em movimento.

Mas estes são os Battles de 2019. Havia que recuar na fita do tempo até 2015 com uma composição obrigatória: The Yabba. Canção que bem pode resumir toda a obra dos Battles, ao vivo é um vagalhão, uma frente de Rokossovsky a abater-se sobre um grupo de exércitos de Manstein ou, simplesmente, como D. Afonso de Albuquerque pelo Índico. Tudo aqui se concentra: o prog dos Yes (ali por Roundabout) distorcido pela vontade e valor de Ian Williams, que arranca sons dos sintetizadores e da guitarra como se fossem armas combinadas dignas de Jimmy Smith, dos Funkadelic, do post-rock ou de Robert Fripp e, claro, de John Stanier, que se assume como uma plataforma rítmica cujo software é de Stephen Morris e Bill Bruford.

Melodicamente, Williams leva os Battles em milhentas direcções; do fluxo do post-rock a beliscadelas das Variações para Piano de Anton Webern, com um fundo de rock progressivo, mas sempre numa perspectiva muito própria. Não haja dúvidas, a banda de Brooklyn é daquelas que serve para nos introduzir a uma data de sons novos através dos seu próprio som.

Já Stanier é proprietário de algo a que noventa e nove por cento dos bateristas daria um rim para ter: o seu próprio estilo, a sua própria sonoridade. Os seus padrões, oriundos das fanfarras típicas norte-americanas dos drum and bugle corps, da disciplina do prog e do controlo criativo de muito jazz, são um espanto para ouvidos e olhos, a corporização do #dartudo.

Com efeito, é o yang de simplicidade e precisão ao yin multi-instrumental relativamente complexo de Williams – desta interdependência não nasce um confronto maniqueísta, mas uma força inquebrantável que, apesar de ter perdido elementos humanos, foi ganhando elementos sonoros e regenerando-se.

Falámos dos Yes? Regresso a 2019 com Sugar Foot, que conta com a colaboração de Jon Anderson, vocalista daqueles. Nova desconstrução math-prog, até parece outra ao vivo. O título é feliz: o pé direito de Stanier rebenta-nos com o peito através do bombo em assinalável trabalho de precisão; John Bonham e Jonathan “Sugarfoot” Moffett ficariam orgulhosos. O resto são harmonizações de voz de Anderson e o trabalho a dobrar (saudades Dave Konopka) de Williams nos arranjos, que remetem sempre para os “seus” Don Caballero.

Agora reduzidos a duo depois de oito anos como trio, é mentira se se negar que a verve criativa de Tyondai Braxton enriquecia os Battles, mas é também verdade que a banda não soçobrou com a sua saída – tal como com a de Dave Konopka. A ausência deste fez-se sentir nalgumas canções, que o baixo era vinagre balsâmico na sua dinâmica e obriga agora a complexidades que puxam muito pela forma da banda, que ainda assim teve alguns segundos em falso – exemplo: pouco aproveitamento dado ao embalo da voz de Ishmael Butler dos Shabazz Palaces em IZM.

Continuávamos em fluxo, no melhor período do concerto. Toda a potência de Summer Simmer a arrancar fúria dançante ao público – ao nosso lado, alguém serpenteava a música num minuto e filmava siderado o desempenho de Stanier noutro – e a servir de espoleta à energia da banda, que não parou e seguiu directamente para Ice Cream, até agora a maior ovação da noite. Se a voz de Matias Aguayo (a discografia dos Battles é um torniquete de grandes colaboradores, chiça) mal se ouviu na mistura vinda de som, a melodia aparvalhada e viciante tomou conta do MusicBox e, bem, mestre Stanier pôs todos a dançar em ordem unida.

O recorde de maior ovação caiu pouco depois, com Atlas. Gostaríamos de ter visto mais incursões à obra anterior da banda (só de Mirrored deveriam ter saído uma Tonto e uma Leyendecker e EP C a fantástica TRAS 2), mas esta continua a ser o maior cartão de visita da dupla e foi a melhor execução que lhe vimos.

Se faltam as mui características vocalizações de Braxton, não faltam os arranjos e o músculo. Com o que têm em palco (e apenas um crash na bateria de Stanier), os Battles mostram mais do que muitas bandas com o dobro dos elementos; a batida marcial faz inteira justiça ao nome do grupo e impõe a sua auctoritas e som e dá guia de marcha para o desprendimento do pé de dança a uma sala esgotada. É um malhão que podia ter sido obra de um quarteto de Kurtz, Kilgore, Willard e Mr. Clean de Apocalypse Now, um rasgo de insanidade na disciplina rítmica e melódica do prog-math experimental da banda de Nova Iorque. Uma canção que ajudou a definir os últimos quinze anos de música popular, no mínimo.

Em boa ordem o armistício vinha chegando. Os dois andamentos de Last Supper on Shasta demonstraram inequivocamente a nova vida do disco ao vivo; é mais uma montra da relativa perda de fôlego da banda e a redução aos seus elementos essenciais de esquizofrenia concisa na bateria e o frenesim do tapping na guitarra e no encadeamento electrónico das melodias.

Uma saudação de Stanier e breves minuto de conversa por parte de Williams, que do acerto na instrumentação revelou desacerto cronológico, que não era a primeira vez que os Battles actuaram em Lisboa ou perto: já em 2012 passaram pelo Meco. No caso de Stanier, não é fácil actuar envenenado por uma das piores cervejas deste Mundo, mas as lendas vão em frente!

Ora, ainda assim veio uma Ambulance, brinde final para atirar todos contra a parede e mostrar que o math rock miscigenado com outrem deste século é muito escrito pelos Battles. O suadouro exaltado a que Stanier se submeteu lembrou a todos que havia umas senhas de uísque para gastar – o gelo fica para os mais sequiosos e/ou lesionados por tanta dança. Desfile de vitória até ao bar.

Vitória de uns Battles de peito feito no campo da honra.


sobre o autor

José V. Raposo

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