Cobretti/Vincent

Cobretti/Vincent
2019 | Cobra Kai Records | Punk

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Como sabemos, as cidades são feitas de edifícios, de pessoas e de criações – neste caso, de canções. Poucos há que tenham cantado a escuridão de Lisboa – por contraposição com a famosa e sacrossanta luz de Lisboa – do que Rodrigo Velez ou, melhor dizendo, Jay Cobra, Marion Cobretti ou o pseudónimo (quando não alter ego) que lhe ande a dar na telha. Por escuridão entenda-se a escuridão da alma, a sarjeta onde fervilham instintos tão malditos que nem no id de cada um têm lugar.

Também Sonny Vincent, personagem que ajudou a alicerçar o punk norte-americano e que é a outra face deste LP, é um construtor de contos de negrume urbano. Mas deste falaremos mais à frente.

Cobretti anda nisto do punk há muitos, a partir do seu covil algures na Ajuda, o “seu” bairro. Por entre jogos de bilhar e cartadas e copos de três em tascas e agremiações daquelas colinas (com gente como o saudoso Madi Nelson), constrói a métrica de letras que cantam a fuligem das almas, sempre com o ouvido e a memória nos idos de 1977. Desse tempo resgatou José Serra, baterista dos Aqui D’El Rock, a primeira banda nacional a editar algo que se assemelhasse a punk e, agora, veio a colaboração cimeira com Vincent.

Como bom artista, atravessou fases. Desde a crista trazida do UK 82 nos anos noventa até ao presente de trovador da rua, passando pela fase de mashup entre Bon Scott, Stiv Bators e G.G. Allin, com cacos de vidro e facadas (na noite em letras e em palco) à mistura – e um disco ou outro do Ray Conniff a voar para as cabeças do público na extinta Fantasma Lusitano. Lembrou-se de Paulinho Cascavel, de Chalana (umas 84 vezes) e dos Aqui D’El Rock quando nem meia-dúzia de gajos deles se lembrava.

Pelo meio partilhou palco e camarim com os Dictators e os English Dogs e foi a Barroselas com os Clockwork Boys atravessar mais uma fronteira. Como bom ajudense, na linha divisória clubística do bairro pendeu para o Belenenses. Apoiou-o militando no sector da Fúria Azul e com uma trova sobre a glória do Belém e de Matateu.

O recontro amigável, melhor dizendo, o diálogo atlântico começou através do saudoso Mike Hudson dos Pagans, banda em que Cobretti participa como baixista num dos seus singles. Da ajuda a compilar um álbum triplo de homenagem a Vincent até este split foi um tirinho – nunca no escuro.

Tal como o mítico split entre os Void e os The Faith (Dischord, 1982), este LP é um tiro de raiva vindo da tragédia das ruas. E, bom, nada como começar um registo com uma canção sobre os mortos-vivos que pululam por entre o lixo da cidade madrasta e encantada, como é Cidade do Vício. A herança do garula e dos Aqui d’El Rock (e dos Mão Morta) presente em cada esquina da faixa, tal como o dedo de Vincent para a composição.

E para viver na cidade o que é que é mesmo preciso? Aquilo com que se compram os pinhões. Fora com as habituais invectivas contra o dinheiro do punk, que pragmatismo é o que se quer – leia-se guita na conta. O punk também sofre, também fica desfeito em pedaços e quer uma vida a cores sem Tiro no Pé. Tornar estas agruras audíveis é mais difícil do que pensa, visto que cair na banalidade e no cliché é facílimo.

Até aqui, o lado de Cobretti (que conta com o seu comparsa de sempre, Hugo Conim, um dos melhores guitarristas cá do burgo) é aquilo a que nos habituou, com um desempenho vocal que vai melhorando com os anos. O título de Viver à Margem aponta no mesmo sentido: no rebelde tatuado que vive no meio da decadência e da violência, dos gritos de vítimas e das jogadas inglórias, mas que traz consigo um solo de piano herdeiro de London Calling ou dos contemporâneos Hold Steady. Um piano num cabaret fumarento onde o menos bandido é o que está a ver se rouba maçanetas das portas. Percam-se no duelo entre o riff e o piano, que não vale a pena sair da canção.

Este lado do disco não é apenas um: são três discos num só. Seis canções que retratam os últimos quinze anos de carreira da figura mais subvalorizada do punk português – e uma das que mais abnegadamente lutou pela sua dignidade e qualidade, por entre a mediocridade reinante. As trocas de músicos entre faixas atestam da capacidade mobilizadora que tem para lutar a boa luta.

Compõe dos três acordes e pontapé nas costas dos primeiros anos dos Clockwork Boys até às suas odes a Zé do Telhado com os Cavalaria 77, com arranjos fora do comum numa cena (?) punk (?) que por vezes parece desconhecer mais instrumentos e técnicas de estúdio do que uma bateria, uma guitarra e um baixo. E coerência artística e moral.

Com um manifesto enrolado em arame farpado termina o lado português do LP, cuja mensagem, sem quaisquer ambiguidades, se chama Odeio a Tua Banda. Sob um riff sem trela e um órgão gingão arde um comentário ácido e certeiro de um justiceiro sobre o plástico “punk” que por cá temos armado em revolucionário, estéril ideologicamente (ou sem qualquer ideal) e rastejante musicalmente. E, claro, as vacas sagradas cujo altar foi erguido em cima de uma mentira e as cliques-cliché que nunca chafurdaram em champanhe, só mesmo em lavagem para porcos. É missão divina odiar mediocridade.

Sonny Vincent é uma lenda. Um punk antes do punk, através dos Liquid Diamonds e sobretudo dos Testors, banda formada em Nova Iorque em 1975 e que actuou em mecas como o Max’s Kansas City. É daquelas personagens que nunca se deixou esmorecer por falta de sucesso comercial e foi, como diz a juventude, fazendo a sua cena, munido dos três mágicos acordes que mudaram tudo.

Autêntico trota-mundos do punk, tocou tudo dos três acordes e com todos – de Nova Iorque e nove anos com Maureen Tucker e Sterling Morrison (Velvet Underground) até ao Minnesota e aos Model Prisoners com Bob Stinson (Replacements) e aos Shotgun Rationale com Greg Norton (Hüsker Dü). E isso reflecte-se no seu lado do split, um palimpsesto constituído por novas versões de canções antigas e por reedições. Convenhamos que o material é bom, mas os nomes que com ele colaboram dão ainda mais brilho ao registo: Rat Scabies e Glen Matlock, entre outros.

Se ficaram deprimidos com o pessimismo e veneno do lado de Cobretti, é melhor desistirem de ouvir, que não têm estofo para isto. Totally Fucked é uma brilhante oscilação entre o hardcore de uns Circle Jerks e a melodia suja dos Sonics – a voz de Vincent para aí remete. O resto é punho no ar (ou na cara de outrem) no refrão.

Também daquele lado do Atlântico continuam os arranjos fora da caixa em Lines On My Mirror, cuja paranóia é marcada não a ferro em brasa, mas em clarinete e violino. A dor e a incerteza não povoam só as ruas da cidade; dentro de uma casa (metafórica?), o narrador não dorme há mil anos, não consegue expurgar a tralha da alma e nem a arma o deixam escolher, numa existência frustrante que bebe dos Adolescents e dos Dead Boys.

A presença destes últimos é uma constante na obra dos dois Autores. Hey You, mercê do seu trabalho cortante de guitarra, é um passeio (num beco bem batido) ao tempo dos Testors. Reza a lenda que um administrador de uma editora quis celebrar contrato com a banda de Vincent mas pediu para o som ser menos “sujo”; levou de resposta esta mesma canção – um pirete directamente do esgoto, sítio onde não se fazem castelos no ar.

Mas até o mais empedernido punk tem um coração que sangra, nem que seja de raiva. Aqui inclusa uma certeira You Don’t Break My Heart, original dos Testors. Vincent a mostrar o lado mais garageiro e arranhado, como que uns Dead Moon antes destes. Um ponto alto do LP, que bem ilustra a dicotomia melodia/agressão do lado norte-americano do trabalho.

O final, Sidewalk Cracks, é um enorme final. Assembleia magna do curso de 1977: para além de Vincent, há Rat Scabies e Glen Matlock, que dispensam apresentações. À casa das máquinas dos The Damned e ao baixista talentoso substituído nos Sex Pistols por uma nulidade junta-se o saudoso Steve Mackay no saxofone, para aquele piscar de olhos jeit-, chungoso aos Stooges.

Vincent cospe e declama e pede perdão pelo passado, mas certo é que das rachas do passeio (metafóricas ou não) viemos e lá acabaremos. Na rua este LP começou e na rua acabou.

Em jeito de posfácio, Sonny Vincent mantém a capacidade de trabalhar com nomes novos ou diferentes da caixa punk, como é o caso de Cobretti – dane-se a distância geográfica. Pelos nomes que nele constam e, sobretudo, pela música que dele emana,  este é um disco histórico, com todas as letras.

Dois iconoclastas e agregadores encontraram-se e fizeram um disco que é uma reunião dos fundamentos do punk, que continua tão relevante em 2019 como o era em 1977. Dois percursos semelhantes que confluem num dos últimos grandes álbuns da década.

Dois sobreviventes que foram à padaria do Diabo, comeram o pão que amassou e saíram de lá sem pagar. “Vida maldita!”, gritou Mefistófeles.


sobre o autor

José V. Raposo

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