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Em caixas de comentários de vídeos do YouTube e em buracos culturais diz-se que o rock está morto, que já não há bandas de jeito e que a juventude de hoje só ouve pop e “essas coisas”. Pior ainda, um jornalista metaleiro nacional proclamava, há alguns anos e com aguda dose de ignorância, que “jÁ nÃo Há BaNdAs De CuLtO” – confundindo escandalosamente encher o quarto de posters de bandas que vendem milhões com bandas que, pela sua originalidade e idiossincrasias, merecem uma admiração diferente. Todos errados: o rock existe, continua com qualidade e ainda há bandas de culto, como é o caso dos The Hold Steady.
Grupo oriundo de Brooklyn com raízes – pessoais e culturais – em Minneapolis (devotos da Igreja dos Replacements), é um dos maiores portentos do rock alternativo deste século. Transpõe as melhores tradições punk e indie de oitentas e noventas para o mundo do heartland rock – aquele som monumental sobre fábricas ferrugentas, famílias desfeitas e os pequenos prazeres da vida de gente comum que cose as calças para as fazer render ou que vai para a faculdade em busca de miúdas e mais dinheiro do que os pais, todos eles à procura de um Sonho Americano cada vez mais difícil de concretizar. Aproveitem a espécie de quarentena a que estaremos sujeitos nos próximos dias à conta do COVID-19 para tratarem da vossa saúde e ouçam uma senhora banda, lavando as mãos de mediocridades e doenças.
Cansados de andar em digressões intermináveis em que mal conheciam as cidades por onde passavam e onde se entrelaçavam os copos, as setlists e os solos numa massa de memórias quase indistintas entre si, os Hold Steady resolveram pegar no vetusto conceito de residência e aplicaram-no a Londres; desde 2018 que, fazendo jus à sua própria canção, The Weekenders, visitam a cidade para um fim-de-semana de arromba com três concertos, denominado The Weekender. Como chamariz, há direito a alinhamento rotativo entre concertos, merchandise exclusivo, convidados especiais e até uma cerveja dedicada ao evento.
Na edição deste ano, o Electric Ballroom voltou a ser a casa das duas primeiras noites, tendo nós assistido à segunda. Em termos de convidados, fomos brindados com a dupla de sopros local, The Horn Steady UK, que abrilhantou e aproximou da epicidade de estúdio uma boa parte do alinhamento.
Na fita do tempo, estamos perante a maior e melhor formação da banda desde a fundação, em 2003. Depois de um período de certo declínio entre 2010 e 2016, eis que o regresso do teclista Franz Nicolay ressuscitou a banda. E, bem, com Thrashing Through The Passion (Frenchkiss; 2019) – esse regresso à boa forma – para apresentar, a coisa prometia.
Coube aos ingleses Martha desenrolhar a noite. Quarteto de power-pop-punk na onda de Exploding Hearts e Thermals, muito dado a refrães emotivos vindo da certeiramente denominada localidade de Pity Me, não perderam tempo a mostrar na prática que eram a melhor banda de abertura do fim-de-semana. Conjunto plenamente democrático: todos os membros cantaram pelo menos uma canção, com pequenos deslizes de equipamento que ajudaram ao factor fofice.
Dizendo-se igualmente discípulos de Paul Westerberg e dos Replacements (bem patente no seu material), são um repositório ora humorístico, ora sarcástico de referências de cultura popular e de corações partidos – de Maya Angelou a Roddy Piper, passando por unhas encravadas de Anton Chekhov. Tudo isto muito catchy e com vontade de nos dar molas aos pés.
Menção especial para 1967, I Miss You, I’m Lonely; para além das emoções que brotavam da interpretação da banda e do refrão, não há como não rir com uma letra que contém humor britânico sobre queixos partidos, o Tejo, o Benfica e a Gulbenkian. Foram como vieram, bem aplaudidos por malta lá da terra, por fãs antigos e por novos fãs.
Estando-se no Reino Unido, cumpriu-se a pontualidade local: às 20h00 era tempo de a banda de Craig Finn, Tad Kubler, Franz Nicolay, Steve Selvidge et. al. tomar de assalto o palco do Electric Ballroom. Sala para lá de apropriada para uma banda em que é audível o peso da História do rock: por ali passaram, ao longo de décadas, gente como os Clash, Ramones, Specials, Talking Heads, Prince, Joy Division, Smiths, Peter Hook, Blur, U2 e mais um batalhão daqueles que enchem listas de melhores de qualquer coisa.
Deixamo-nos já de tretas: o concerto estava ganho logo ao começo, com Stuck Between Stations. Riff à moda do Boss e uma letra que se aplicaria àquele concerto, mas a contrario sensu: “Boys and girls in London have such a great time together”. Gente que veio um pouco de todo o lado para a homília londrina anual, com histórias de vida diversas, muitas delas passíveis de constituir material de letra da banda. Eis a Positive ou Unified Scene.
É sábado à noite, noite de festa para chavs, lads, normies e malta desta Scene. Noite de triunfo e de malhões como Party Pit, uma das canções mais bonitas da banda, a darem o mote. Um riff poderoso, arranjos de piano que remetem para um thriller de Hitchcock (ou não estivéssemos na cidade onde filmou Frenzy, entre outros) e uma letra que se subsume aos nox ludos de sábado: “gonna walk around and drink some more”.
Finn gesticula (sem se atrapalhar com a sua Les Paul Melody Maker embelezada com o emblema dos Minnesota Twins) que nem um maestro da tropa fandanga, com a segurança de quem tem queda para isto, de quem está com paciência e de quem está suficientemente ébrio para manter a toada.
As personagens cantadas – ou, melhor dizendo, declamadas por Finn – nas canções dos Hold Steady campeiam entre o trágico e o cómico. Vítimas do azar, de más decisões de vida (tatuagens no pescoço com dizeres bíblicos) ou de demasiadas substâncias, afogam as memórias e as mágoas em encontros e festas onde o desespero, cacos de vidro e droga barata são de praxe.
Sequestered in Memphis foi de estalo. Se na maioria das canções o coro e o trampolim do público estavam devidamente oleados, aqui, tratando-se de uma das maiores faixas da banda, o resultado foi “à antiga”, como diria um desses botas-de-elástico de YouTube. O interrogatório policial em forma de canção sobre gajas que na escuridão dum bar parecem porreiras mas cujo desespero é revelado pela luz do Sol foi a primeira canção da banda que alguma vez ouvimos (em 2008) e continua a ser presença fundamental nas suas actuações. Até porque nos ensina que em Memphis se frita tudo e que não interessa em que casa de banho se deu o fortuito encontro da letra.
Os Hold Steady são mesmo uma banda de culto, num duplo sentido. Em primeiro lugar porque, mercê da magnificência da sua obra, provocam emoções e devoções como poucas bandas provocam – não anda por aí muita gente a criar um imaginário próprio com esta envergadura e que mete fãs a tatuar a cara de membros da banda nas costas ou a criar grupos de Facebook sobre trocadilhos com as suas letras. E, em segundo lugar, porque a história de várias personagens das letras – como a Holly de Separation Sunday – tem um pendor de Fé e um confronto tentação v. Deus. Afinal de contas, Finn é devoto e vai à missa em Brooklyn.
Este é a alma e um dos motores dos Hold Steady. Já o descreveram como um gerente geek de uma qualquer empresa que tem uma banda ao fim-de-semana; acrescentamos: trata a vida como uma quase sitcom e esbraceja como um George Costanza a quem um esquema terá corrido bem ou mal, dependendo da canção e puxa, puxa sempre pelo público. A alguma euforia alcoólica junta-se genuína alegria por partilhar connosco uma ocasião especial como esta, em plena a-mi-za-de, como diria o saudoso Xico da Ladra.
O alinhamento mantinha-se fiel à era mais relevante da banda: desde o início de carreira com Almost Killed Me (2003) até Stay Positive (2008), com paragens obrigatórias pelas historietas do álbum conceptual Separation Sunday (2005) e Boys and Girls in America (2006).
Do regresso à normalidade chamado Thrashing… tivemos direito a T-Shirt Tux (esse hino contra estupores sem piada de que tanta gente gosta), Entitlement Crew e Confusion in the Marketplace. Na segunda, a melodia do órgão de Nicolay remeteu para o melhor de Bob Seger e a letra para o imaginário dos falhados que Finn refina inspirando-se em Raymond Carver – tudo encimado por todo o poderio sonoro da secção de sopros convidada. Finn é, além de Carver, um continuador (musical) de personagens que poderiam sair de Last Exit to Brooklyn de Hubert Selby Jr. ou de Smoke ou Blue In The Face de Paul Auster e Wayne Wang.
Algumas palavras sobre Nicolay: se Finn é a alma, este é um dos motores dos Hold Steady. Fez demasiada falta quando esteve ausente, não só porque é parte fundamental do som da banda, mas também porque representa a parte cool e com jogo, um gajo que ora podia estar ali com o seu fedora e lenço na lapela, ora podia estar a tocar num ensemble de jazz da Costa Oeste de sessentas, com um Chet Baker desta vida.
De surra, clássico da banda: Chips Ahoy!. Bolachada power pop na tromba e da frente até à banca de merch mais um refrão em uníssono. O único cansaço que se fazia sentir era o de manter o nível – para os de palco e para os da plateia. É evidente a cumplicidade entre os membros: aqueles solos partilhados entre Selvidge e Kubler ou uma reunião entre secção melódica junto ao órgão de Nicolay são prova pleníssima de que este formato é o ideal para trazer ao de cimo o que de melhor tem este grupo.
Se Constructive Summer não foi o pontapé de saída como na noite anterior, acabou por ser ponto alto à mesma, demarcando a parte final da setlist. Para além de mais um grande combo riff-letra-coro, serviu de lembrete de que estávamos em Londres, a cidade dos Clash e de Saint Joe Strummer (e de London Calling, óbvia base do som dos Hold Steady), quiçá o único bom professor que muito boa gente teve, conforme reza a letra – façam-lhe um brinde, porque ele era melhor do que 90% dos gajos a que vocês chamam grandes vocalistas.
O lembrete sobre os Clash não se esgotou aqui. Numa longa introdução de Banging Camp, Finn, no melhor espírito de uma cena positiva, fez a devida homenagem aos maiores que o precederam, falando, com emoção, da importância que a banda britânica teve na sua formação musical e pessoal. Foi com eles que aprendeu o significado de pistolas-metralhadoras Sten em Knightsbridge e o que era uma banda e pêras, sentindo-se, a cada audição da banda de São Joe Strummer, como se tivesse cinco metros de altura e sequioso de fazer parte de algo maior do que si.
Fecho de alinhamento com Southtown Girls, Your Little Hoodrat Friend e How a Resurrection Really Feels. Um trio sobre dar umas voltas com mulherio de má vida, falsas aventuras com Holly no Penetration Park e a verdadeira ressurreição desta por entre cacos e Vigílias Pascais. Três bloody good bangers, como dizem os nativos de Camden e arredores.
Para o encore, mais uma surpresa: The Feelers, uma canção nova que não destoa da obra dos guv’nors. Sem pressas se foi contando mais malhas e mais entrega e agradecimentos por parte da banda e de Finn, que nunca perdeu a pedalada ou não tivessem deixado o músculo de Hostile, Mass. para penúltimo lugar.
Ao fim de hora e quarenta, mais coisa menos coisa, havia que fechar o tasco. E que fim, com Killer Parties. Cerca de dois minutos ao ralenti preenchidos com uma sentida despedida e agradecimento por parte de Craig Finn, tão sinceros e enternecedores quanto a amnésia do conviva da letra ou a antítese entre versos e pontes solenes e o majestoso refrão.
Certo é que esta festa londrina existiu mesmo e foi um torvelinho e tanto, daqueles que justifica a sobrevivência do rock – alternativo e não só. Perante uma interpretação destas, aumentada pela harmónica de Nicolay, só se pode ficar em estado de imensa felicidade e a esmurrar o ar uma última vez, numa noite que valeu por muitas. Faltaram uma Stay Positive (também o hardcore é basilar nesta banda) ou uma Denver Haircut, mas ouvir cantar sobre descolagens com tequila e aterragens com Tecate depois de doze anos de espera já foi muito bom.
Foi para isto que se fizeram os sábados à noite, rio Mississippi acima e abaixo, passando por Camden, Brooklyn e mais além. Vimos a devoção e renovámos os nossos votos de que os The Hold Steady são uma grande e digna banda de guitarras cujo material é suficientemente mágico para ser a banda sonora do genérico final das nossas vidas e que é pecado mortal (para a melomania contemporânea) não os ouvir.
Killer parties, de facto.