Bemti

era dois 20,20
2020 | Edição de Autor | Queer-synth-folk

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O primeiro disco de Bemti, “era dois”, colocou o artista brasileiro em várias listas de melhores lançamentos de 2018 (Rolling Stone Brasil, Tenho Mais Discos Que Amigos, Jornal O Povo, etc) e rendeu ao músico uma digressão que passou por nove estados e três países. Embalado por essa trajectória, Bemti, decidiu lançar uma nova versão do álbum com cinco faixas bónus e descreve-a em baixo faixa a faixa.

#1 Intro

“Quando eu era dois…”. Com esse verso, o canto dos bem-te-vis, instrumentos se aquecendo e uma viola que vai rimar com a faixa “Outro”, a “Intro” revela uma parte do conceito de reconstrução que pauta o disco como um todo. Os sons ambientes foram gravados na fazenda da minha vó, na Serra da Saudade em Minas Gerais (onde eu nasci), e é um detalhe importante pra mim contar além dos cantos dos pássaros, com o eco dos caminhões cortando a única rodovia da região, um som que eu lembro de ouvir desde criança.

#2 Me Dei Um Novo Nome

Mais do que uma coleção de músicas juntas, boa parte do disco “era dois” foi composto pensando na narrativa completa: começo, meio e fim. Sempre pensei na “Me Dei Um Novo Nome” como a abertura do disco. A estrutura quebrada que vai se resolvendo aos poucos e o final épico, pedindo por um ‘rebatismo’, são o convite para esse universo sonoro. Eu amo melodias grandiosas e a reta final da música sempre me emociona.

#3 Gostar de Quem

A faixa “mãe” de todo o meu projeto solo surgiu turbulenta. O processo de me convencer que deveria ser eu a cantar “Gostar de Quem” também me fez convencer que eu era capaz de realizar um disco só meu e que tinha chegado a hora de “botar minha cara no Sol” como cantor e artista solo. Foi só depois de lançar esse single e o clipe no começo de 2018 que eu fui gravar o restante do disco, impulsionado pelo retorno muito legal que eu tive das pessoas que se identificaram comigo. O primeiro verso dela vem de algo que ouvi um dia antes de terminar definitivamente um relacionamento que durou 6 anos entre idas e vindas: “Olha, é você que traz névoa em dia de sol”. E era literalmente um dia de sol que ficou cheio de neblina de repente. O paralelo foi inevitável e o resto é história.

#4 Tango (feat. Johnny Hooker)

Talvez uma das letras que eu mais gostei de ter escrito na vida mas que foi escrita sob muita dor, como fica claro… “Tango” apareceu numa ressaca de uma paixão muito intensa que queimou muito rápido, e que do dia pra noite deixou esse mineiro chorando por um dia inteiro em Copacabana, sem ter onde dormir. Quando conheci o Johnny Hooker estávamos passando por experiências parecidas de reconstrução e superação de traumas. Quando o convidei pra participar dessa música e vi o quanto ele se identificou, sabia que iria surgir uma canção daquelas de rasgar todos os corações. A produção do Luis Calil foi absolutamente genial em deixar pra cima uma música que é melancólica demais. E os violinos épicos da Fernanda Kostchak costuram tudo com maestria. Tenho muito orgulho dessa faixa e do clipe!

#5 Eu Te Proíbo De Ter Esse Poder Sobre Mim

O “era dois” tem duas partes bem definidas e essa faixa 5 é o término da primeira parte, que é a ruptura final com alguém ou algo que por muito tempo te prendeu emocionalmente. Vale pra qualquer rompimento difícil, seja amoroso, profissional, de amizade… (no meu caso eram os três). Apesar da letra forte, é um dos instrumentais mais relaxados do álbum. Nesse contraste, a música te convida para uma catarse e uma libertação num ambiente paradisíaco que talvez só esteja na sua cabeça, mas que deve ser o lugar onde você começa pra valer uma nova vida. O clipe também é 100% sobre isso. A essa altura do campeonato já dá pra ter uma noção da diversidade sonora do disco e tudo tem como base a viola caipira de 10 cordas.

#6 Às Vezes Eu Me Esqueço de Você (feat. Natália Noronha)

Mas como nada na vida é fácil, a ruptura cantada na faixa 5 ainda deixa marcas. Em “`As Vezes…” eu canto o passado mas projetando o futuro. A voz da Natália Noronha tem um caráter pop irresistível e a gente brincava que a música é um “indie reggaeton futurista”. Também penso que é “Uma música tentando lembrar de outra” por causa de toda a carga nostálgica e esse clima de videogame, vozes de crianças, etc… e quem me conhece e conhece a Natália sabe que apesar de ser um dueto “clássico” de homem e mulher, meu eu lírico está tentando se esquecer de um homem e o da Natália de uma mulher.

#7 A Gente Combina

“A Gente Combina” é uma música otimista sobre conhecer pessoas em aplicativos. Quando comecei a compor, queria muito fazer um hit perdido de brit rock do começo dos anos 2000 e amo que mesmo com a viola caipira, o resultado foi tão certeiro. Me lembra várias bandas que eu amo: Editors, Doves, Keane… Tudo culmina no final barulhento e eufórico, que faz um paralelo aos encontros inesperados que deixam a gente sem ar, e abre caminho para os silêncios profundos da próxima faixa.

#8 Carta a um Marinheiro

A faixa 8 é o momento de mais respiro do disco. Uma música sobre se apaixonar novamente, mas entender que a pessoa amada pertence ao mundo inteiro e que o ideal do amor romântico não funcionaria com ela. Os versos e melodias crescem na divagação entre o encantamento por essa alma livre e o encantamento pelo mar, do qual eu cresci longe, mas que sempre me hipnotizou. Eu vi o mar pela primeira vez aos 10 anos de idade e depois só aos 20 novamente, e aí então virou uma presença constante na minha vida. O coro da música, como sereias tragando marinheiros no oceano, é dividido entre minha amiga Marisa Brito, de Belém, e Edvaldo Oliveira, um amigo de adolescência que vive em Porto Alegre. Hoje em dia ele é geólogo mas foi ele quem cantou minhas primeiras músicas quando eu tinha uns 14 anos e fiquei muito feliz por ele ter topado esse convite. Se desse pra falar todas essas pequenas camadas e detalhes que compõe o “era dois”, escreveria umas 100 páginas.

#9 Jaguar

Queria pelo menos uma música em inglês no “era dois” (porque adoro compor em inglês) e queria que fosse sobre esse momento depois da superação: o de se bastar sozinho antes de se entregar pra valer de novo e amar quem você é e de onde você vem. Compus o coro embaixo de uma cachoeira imensa no meio da Amazônia (uns 100 km ao norte de Manaus). Após 10 minutos levando uma torrente de água no corpo, comecei a ouvir o coro e as palavras na minha cabeça. Cantei, gravei no celular, e depois encontrei todas as palavras em subdivisões do tupi (peixe preto, água-casa, onça-mãe…). Tive sorte de encontrar crianças que cantaram essas palavras exatamente do jeito que eu “ouvi” da cachoeira. Defino ele como um coro “inspirado” em tupi, captado nos ares da Amazônia. A letra em inglês que começou a fluir assim que eu gravei essas palavras no celular é inspirada por situações vividas pela família da minha mãe que é de origem indígena. Situações como atravessar 300 km pelo interior de Minas a cavalo nos anos 50, tendo que esconder os filhos das onças que vinham caçar à noite. Todos esses subtextos estão imersos na explosão pop que é Jaguar. É o clímax de cores, ritmos e atmosferas antes do gran finale: Outro.

#10 Outro (part. Tuyo)

O sentimento que gerou “Outro” foi tão puro e tão honesto, que precisei me policiar pra deixar a letra do jeito que eu a compus, sem medo de deixá-la melosa ou muito romântica. Foi uma alegria inacreditável quando a Tuyo topou participar dessa música, nela há uma sensibilidade grandiosa que as vozes de Lio e Lay só amplificaram. Trivia: a Lio chorou gravando o primeiro take. Acho muito bonito que o disco seja levado embora pelos ecos das vozes da Lio e da Lay (na edição original do disco essa é a ultima canção). A rima sonora com a “Intro” te convida a entrar novamente nessa jornada emocional que é o disco “era dois”.

#11 Vira Sol

A primeira das faixas bônus da reedição do disco surgiu lá em 2018 quando o “era dois” estava sendo lançado. Mesmo gravada só agora em 2020 eu sempre senti essa música como um bônus do “era dois”, porque sempre esteve presente (e evoluiu) nos shows. Essa letra é uma que eu especialmente quero deixar pras pessoas interpretarem, porque ela pode ser sobre um triunfo definitivo ou sobre um fracasso definitivo. Um fã já me mandou mensagem no instagram interpretando perfeitamente esses dois lados então eu acho que essa “chave” está na própria música. Eu sou absolutamente apaixonado pelo resultado final da gravação, com os crescendos épicos e a voz do Gaê que contribuem demais pra esse clima de euforia melancólica da música.

#12 S.O.S.

S.O.S. é uma música do Guilherme Arantes do disco “Coração Paulista”, de 1980, e não está entre as mais conhecidas dele. É meu primeiro cover lançado oficialmente e por mais que eu tenha gravado antes da pandemia, fiquei impressionado com o quanto esse tema da solidão urbana ressoa exatamente com o que estamos vivendo agora. São 40 anos dessa composição que se revelou muito atual, e o próprio Guilherme me escreveu elogiando o cover, o que me deixou muito feliz. Acho também que é minha música onde o clash entre a viola caipira e os sintetizadores é mais dramático. O produtor, o Luis Calil, descreve a música como “alguém deixando o Rodrigo Amarante perdido no set de Blade Runner”.

#13 Remixes

O que eu mais gosto dos remixes de “Tango”, “Outro” e “Eu te Proíbo de Ter Esse Poder Sobre Mim” são as abordagens completamente diferentes. Me sinto tendo a oportunidade de visitar três outros estilos pela primeira vez através dos remixes. O duo Cyberkills levou a “Eu te Proíbo…” para o PC Music, o Ara Macao (projeto eletrônico do Luis Calil) fez “Tango” virar um forró delicioso e o DJ Nato_PK transformou a “Outro” num hip hop alternativo/trap.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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