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Megafauna é o primeiro disco da Trilogia Bioma, em que Daniel Catarino, artista alentejano migrado no Porto se propõe a ligar metaforicamente as diferentes formas de vida com as especificidades humanas, a explorar a relação tóxica entre humanos e as outras formas de vida do planeta. O álbum surge 2 anos depois do EP Isolamento Voluntário?, e 4 anos após o LP Sangue Quente Sangue Frio. Desde 2018 que Catarino se apresenta ao vivo em power trio, e o formato vê agora a sua sonoridade impressa neste novo registo, com mais rock para reforçar a acutilância das palavras.
O novo disco aborda dúvidas existenciais sem propor qualquer resposta e se questiona sobre quem se acha no direito de ter certezas. É um disco de cantautor, mas com os amplificadores bem altos.
Musicalmente, é rock. São canções rock despretensiosas, interpretadas maioritariamente no formato power trio que apresenta ao vivo, com momentos de psicadelia não conformada. É possível que não seja disco de deixar a rodar enquanto se escreve uma tese de mestrado ou se lava a loiça. Há malhas de guitarra que entram para furar os ouvidos, as letras tanto dão coices como carícias, o baixo dança de crista em riste, a bateria evoca pentagramas. Se os tipos do grunge não tivessem morrido, talvez soassem assim agora. É rock, com a honestidade que se lhe deve quando se tenta observar a vida de perto com olhos de satélite. Só dúvidas, zero respostas.
Lançado pela editora portuense Saliva Diva, Megafauna foi produzido por Daniel Catarino em conjunto com Ricardo Cabral e Manuel Molarinho (Baleia Baleia Baleia) no entretanto gentrificado Quarto Escuro, no Porto.
Este tema nasceu de um método que utilizo muito para criar melodias de voz em temas mais rock, que é escrever coisas aleatórias em inglês. Depois de encontrar o refrão em português, tornou-se mais fácil criar esta história de pescadores que capturam espécies protegidas, e da matança do porco, num espeto em rotação e com “maçã na boca para o estilo”. A parte em que a criança chora ao mesmo tempo que come é biográfica, porque fui a muitas matanças do porco e ficava num canto a chorar com a minha irmã, antes de me deliciar com os petiscos feitos pelas minhas tias.
O tema lança o espectro de hipocrisia e dualidade da nossa relação com os outros seres vivos, que é o elo de ligação do disco.
Esta canção tem 12 anos e já foi rodada por todo o país, primeiro a solo, e nos últimos anos com banda. É um dos temas que esperou pacientemente pela possibilidade de gravar um disco em estúdio.
Nele desfilam várias características da cultura portuguesa, como a maledicência infundada, o uso dos políticos como bodes expiatórios para os nossos defeitos, e claro, um ataque sempre relevante à sociopatia necessária para ser político (“mais contagioso que dar um beijo na boca a um leproso”). Mal imaginava em 2010 que iria ser mais relevante que nunca em 2023, com comentadores de tasca a terem lugar na assembleia.
É outro tema bem antigo, que esperou pela altura certa para aparecer em disco. Usa uma afinação pouco usual (CGCGCc para quem toca guitarra) e não tem refrão. É uma metáfora muito crua da crueldade para com os animais, em que se enterram gatos vivos e se queimam cadelas prenhas. Há ainda um toureiro enterrado ao lado de um boi, e o próprio narrador parece contar-nos a história já dentro do seu caixão.
É uma canção dura de interpretar, mas narrar o negrume da nossa espécie é especialidade da casa.
É a canção mais biográfica do disco, em que abordo situações como abandonar um bom emprego na Irlanda para vir ser músico precário em Portugal, não cumprir desejos mas acabar por arranjar alternativas próximas, e como a desigualdade social inviabiliza a meritocracia que tantos apregoam (em posição de privilégio, pois claro). Costumo dizer que a meritocracia é como uma corrida de 100 metros em que algumas pessoas começam a 40 km da meta e outras já para lá da linha de chegada.
Foi a que deu mais trabalho em estúdio, porque não segue o esquema habitual verso-refrão-verso-refrão-ponte-refrão. Depois de muitas voltas, com a ajuda do Ricardo Cabral e do Manuel Molarinho (co-produtores do disco), lá chegámos a bom porto. A voz do Francisco Lima (Conferência Inferno) e os sintetizadores do Rodrigo Pedreira ajudaram bastante.
Liricamente, é a canção mais abstracta, porque tenta transmitir a frustração que é abdicar de alguns sonhos, e o prazer contrastante de construir objectivos no lugar deles. A conversa de perseguir sonhos está em todo o lado, mas raramente se aborda o facto de que essa correria facilmente cria limitações. Se é verdade que é importante sonhar, ainda mais é criar objectivos, traçar um rumo até eles, e ter mente aberta para mudar de rumo. Não sigas os teus sonhos, jovem! É que o sonho de hoje pode ser uma ideia parva amanhã.
É curioso que nunca se usaram tantos “palavrões” como agora, em que muita gente afirma que as palavras estão ao mesmo nível das agressões físicas. Não quis usar esta expressão de forma ligeira, e o desafio foi colocá-la em contexto poético. Estar “sob vigia logo na ecografia”, “rendas para milionários em gaiolas de canários”, “caderno e pistola na mochila da escola” não são situações lixadas, são mesmo fodidas! As palavras existem por um motivo, e os “palavrões” não são excepção. Para termos liberdade de expressão, é importante não perder a noção de contexto. Proibir palavras é censura, e isso levanta a questão de quem aplica “o chicote que avalia a meritocracia”, ou quem decide o que deve ser proibido. Tal como a democracia, a empatia custa, mas não conheço melhor alternativa, e às vezes temos de engolir sapos para manter as nossas liberdades (uma boa dica para quem ainda mete sapos na montra). E sentirmo-nos ofendidos deve servir para engrossar a pele e fundamentar melhor as nossas posições no debate, na defesa ou no contra-ataque. Proibir é preguiça intelectual e desistência de trabalhar para maior igualdade.
Ah, o materialismo. A validação através da posse. O combate às frustrações numa lista de compras com curadoria algorítmica. Pague num só clique. O desejo que até os pobres têm de manter hierarquias sociais para poderem ascender nelas. O sonho americano vendido para todo o mundo ocidental. Tudo embrulhado em plástico que acaba no mar, enrolado nas barbatanas de algum peixe que anda na sua vida e a perde porque alguém queria mesmo um Fidget Spinner. É por tudo isto que chora o olho do tubarão, como a Cristina Viana tão bem captou na capa do disco.
Escrito em 2006, é o tema mais antigo do álbum. O instrumental foi sofrendo alterações ao longo dos anos, e passou de canção acústica a um delírio sónico com mais de 10 minutos. Se há músicas que têm um caminho óbvio, outras têm de atravessar montanhas e desertos até encontrarem poiso. É o caso de “Teias de Aranha”, que pinta o retrato de uma separação amorosa através da divisão de personalidade: uma parte é anjo e outra é sem abrigo, e juntos debatem a dor após o final de uma relação, alternando entre raiva, pragmatismo, inteligência, arrogância, esperança, e tudo o resto que essa situação cria em nós. É difícil olhar em frente quando “não temos tempo senão para olhar para trás”.
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)