Reportagem


The Walkmen

Uma estreia que foi (também) um glorioso reencontro.

Praia Fluvial do Taboão

17/08/2023


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Comparar o regresso ao activo de uma banda de que se gosta com a volta de velhos amigos às nossas vidas é, de certo modo, um lugar-comum. Mas não deixa de ter o seu fundo de verdade. Se há bandas que até podem passar cá a vida mas cujos concertos parecem sempre um encontro de velhos amigos, então em Paredes de Coura foi mesmo um abraço entre amigos que não se viam há dez anos: os The Walkmen e o público português. Estreantes em Coura (menos Hamilton Leithauser, que por ali passou a solo em 2014), em boa hora voltaram a Portugal.

Anunciando o fim do pousio da banda em finais de 2022, a reunião mantém a formação de Hamilton Leithauser, Walter Martin, Matt Barrick, Paul Maroon e Peter Bauer.

Uma boa medida para aferir quão longo foi o hiato? Haver pessoas nas redondezas que trouxeram filhos que, com toda a probabilidade, nasceram e cresceram nestes dez anos. Nem é preciso ir mais longe: no período que mediou a edição do ano passado e a deste ano houve companheiros de casa e de folias courenses que foram pais – e marcaram presença em 2023, note-se. Decerto que a Olívia daqui a dez anos saberá a letra de Juveniles de cor e salteado.

O burburinho e a casa bem composta anunciavam que viria a palco um nome maior do cartaz deste ano. Havia, no entanto, algum nervosismo, temendo alguns ao nosso lado “que isto vá ser uma seca e os gajos estejam fora de forma” – daí a minutos as dúvidas seriam esclarecidas.

Logo à primeira canção, Dónde está la playa (piada fácil: mesmo atrás de vocês, maninhos), muita dúvida foi dissipada; os rapazes, que agora são de vários lados (até de Sevilha) mas que espiritualmente serão sempre de Nova Iorque, continuam na mesma. E, como tal, braços abertos do Couraíso para receber os Walkmen.

Com tudo no sítio e salvo umas saudações, levaram a cabo uma sequência maravilhosamente infernal que começou com In The New Year. Interpretação notável (sempre o órgão e a bateria a conduzir a canção), mas com Leithauser a guardar a voz, que o berreiro aqui é de monta e ainda havia muita coisa para tocar.

Bem ou mal, os Walkmen também têm “aquela” canção – a que provoca aqueles “TOCA AQUELA!!1” desde há mais de dez anos em Coura e um pouco por todo o lado. E ei-la, em toda a sua urgência e fúria, The Rat.

Público e banda, desejosos de soltar os bichos, cumpriram furiosamente. Matt Barrick, um dos grandes bateristas do indie norte-americano, a dar show de bola. Por seu turno, a voz de Leithauser ecoou, o pó do pit levantou e, no fosso, Anton Newcombe fotografou os Walkmen como quem não quer a coisa.

A sequência infernal chegou ao fim com Juveniles, primeira canção de Lisbon da setlist (e do álbum). Composição de inegável beleza cujos arranjos distinguem os Walkmen da “concorrência”, quase que se torna numa canção de embalar, mas o seu remate transforma-a num hino de militância, sabe-se lá do quê: ou és um dos nossos ou és um deles. Tudo isto composto e interpretado com elegância que chega e sobra. São cá dos nossos, os Walkmen.

A proeminência de Portugal no coração da banda é, de resto, escorreitamente explanada por Leithauser entre canções: “tínhamos arranjado tantos problemas e alienado toda a gente, que fomos tão bem tratados em Portugal e resolvemos chamar Lisbon ao álbum”. E, após a pujança de Thinking of a Dream I Had, nova ida a Lisbon em Blue as Your Blood sem qualquer mácula, só novo momento de beleza inimpugnável.

Se noutras propostas do festival temos todo o gosto em ver o presente e perscrutar o futuro, aqui somos felizes a revisitar o passado, capítulo a capítulo – Hamilton Leithauser a relembrar os tempos em que os Walkmen eram uma banda que compunha canções algures no Harlem (138th Street). Bem podiam o grupo fazer a banda sonora de uma adaptação ao cinema de Manhattan Transfer ou de boa parte da obra de Paul Auster, sendo Leithauser a voz da trova, porque a cidade está-lhes no ADN e eles no ADN musical daquela.

Leithauser, que mais parece um puto cabeludo a precisar de uma ida ao barbeiro, leva as mãos à cintura, ao microfone e agarra o ar e puxa pela voz, qual marialva do fado – até parecia Alfredo Duarte Júnior, o fadista dançarino filho do Ti Alfredo Marceneiro. O vocalista pode ser lá do estrangeiro, mas é lisboeta adoptivo. Bem mais do que muitos que, sob a capa de um cosmopolitismo parolo, por lá pululam, fazem o pão caro e descaracterizam a cidade.

Prosseguia o concerto com mais um par de interpretações certeiras de material de Lisbon, Angela Surf City e Woe Is Me, seguidas de uma inversão de marcha em direcção a Wake Up, faixa do primeiro disco, Everyone Who Pretended to Like Me Is Gone.

Se os Walkmen são capazes de musicar as agruras da urbe e da vida nesta, não são urbano-depressivos como os The National, que hoje em dia parecem cada vez mais apostados nessa condição e cada vez menos em fazer canções distintas, como já foi seu apanágio. No caso dos primeiros, os arranjos, as letras, as texturas, a voz e a própria maneira de estar não deixam que assim seja.

O último – ou talvez o mais recente – álbum da banda, Heaven, contribuiu com a canção homónima para o alinhamento. Assaz apreciada pelo público, teve o tratamento de levantar poeira e pessoas, com trânsito nas grades. Pegando na letra, lembremo-nos daquilo que nos faz lutar em Coura. A torcida faz seu o coro final e temos momento de antologia.

Nem meio minuto depois, Hamilton Leithauser lança: “bem, e depois da última canção que escrevemos, seguimos então para a primeira canção que compusemos, chamada We’ve Been Had”. Continua uma canção magnífica, diferenciadora dos Walkmen em relação ao que se fazia em Nova Iorque em 2002; em vez do rock de garagem apunkalhado dos Strokes e Yeah Yeah Yeahs, We’ve Been Had bebe na pop dos anos sessenta, no art rock de setentas e é de arrojo post-punk. Como todo o bom vinho, envelheceu bem e em Coura fechou lindamente o concerto, fazendo-nos assobiar a melodia do refrão na subida até à zona de imprensa.

Faltou muita coisa? Faltou, lamentamos informar. Quando se construiu, no espaço de pouco mais de uma década, uma das melhores e mais consistentes obras do rock alternativo deste século, haverá sempre qualquer coisa que gostaríamos de ouvir mas que ficou de fora do registo da noite (Another One Goes By à cabeça, entre muitas outras) – mas aquilo a que se teve direito foi já muito bom. Um abraço neste ponto de encontro e que bem regressados sejam os Walkmen.

Uma estreia que foi também um reencontro.


sobre o autor

José V. Raposo

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