Reportagem


Les Savy Fav

Diógenes é vivo, tem uma banda e foi a Paredes de Coura.

Praia Fluvial do Taboão

19/09/2023


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Vamos directos ao assunto e poupemos nos spoilers: o concerto dos nova-iorquinos Les Savy Fav em Paredes de Coura foi o concerto de uma vida, um dos melhores que o festival testemunhou nos seus trinta anos. Era já expectável que assim fosse, visto que a banda de Tim Harrington e companhia onde vai, vai para um pontapé-canhão do meio da rua até ao golo de bandeira. E o melhor de tudo é que joga no campo todo e fora dele.

A reputação da banda é de tal maneira notável que há quem os tenha visto em mais do que um país e dê prioridade à banda nas actuações a ver num festival e também quem tenha percorrido centenas de quilómetros só para ver a banda nova-iorquina. Só isto já é indicativo de que o culto tem uma razão de ser: a qualidade.

Encabeçados por Harrington, cinquentão que tem a energia de cinquenta tipos com metade da sua idade e que, pela sua rejeição de regras e de convenções e quase total liberdade de actuação, é mesmo um Diógenes musical dos nossos tempos. Tal como o grego, a sua versão de Nova Iorque não é um tratadista; é, antes, um filósofo de acção ao microfone, um cosmopolita do mosh pit, um cínico que tem o humor e a liberdade como armas artísticas.

O concerto ainda nem começou e já há um manguito diogenesiano às regras. Contrariamente ao choro de muitas bandas contra pessoas a filmarem e a fotografarem um concerto (não há qualquer mal nisso, desde que se respeite os outros), os Les Savy Fav ligam o Zoom, colocam um código para os espectadores aderirem e o resto foi um arrazoado de risos com maior ou menor resolução.

Harrington entra em palco todo de branco, de cabeleira e bandana brancas e de óculos escuros, como se fosse um Macho Man Randy Savage ressuscitado. O campeoníssimo da WWF e WCW pode continuar no Além, mas o seu sósia tratou de nos dar com um cotovelo voador em forma de concerto.

O suadouro (mui) exaltado continuou em The Sweat Descends, orelhuda até dizer chega. Parafraseando a letra, acordem-nos quando chegarmos ao céu? Já lá estávamos, num céu suado e bem pisado pelos saltos e pancadaria (ambos crescentes) num pit que foi dos maiores a que o palco secundário de Coura já viu.

Harrington continua a percorrer a plateia, passa por trás da régie e senta-se no declive do lado esquerdo do palco. Interroga uma espectadora, pergunta-lhe o que mais quer ver no festival (“música ambiente”) e prossegue na sua demanda para o meio dos tarados, com especial dedicação de quem lhe segura o cabo do microfone.

O festão no Zoom continuava e, desculpem-nos o ego, deu-se um momento “mãe, já sou famoso!” quando Harrington começa a descrever os participantes na reunião e profere o nome do glorioso colectivo de eurodance (se alguém tiver vídeos disto que nos mande, que estávamos demasiado ocupados a berrar de júbilo). Também no Google havia festa: entre pesquisas por gifs (pico de tráfego no Giphy) com motivos portugueses e mêmes, havia mais um motivo para fazer deste um concerto para lá de memorável e uma experiência completa. Haja tornozelos, joelhos e ombros para aguentar tantas placagens, vindas de todos os lados. E olhos e ouvidos.

Se Harrington começou o concerto em cosplay de Randy Savage, a meio mudou a farpela para um fato de padrão carne com um barrete à moda da lucha libre. E, bom, claro que a porrada não parou, nem os calores de Harrington, que começou logo a despir-se. E ainda dizem que o Minho no Verão é frescote.

Mas alto e pára o baile, que a banda não é apenas Harrington. Andrew Reuland e Seth Jabour esgrimem acordes que são mais combustível para a furiosa atitude do público. Como não saltar pelo ar e/ou colidir com os nossos semelhantes perante uma suprema interpretação de Patty Lee? Patty Lee, liga as luzes que o festão está a ficar descontrolado. Pensando melhor, é melhor não.

Pontos negativos do concerto? Por exemplo, voltar à versão de estúdio de In These Woods (de ROME (Written Upside Down), porque toda a limitação sónica de estúdio é libertada inexcedivelmente ao vivo, com Harrington a liderar a carga empoleirado na grade, como um grande timoneiro do Cinismo da música popular.

Pouco dado a direitos de propriedade – os seus e os de outrem –, este Diógenes pega no boné de um espectador e comanda as operações a partir do palco, rebolando, colocando-se de quatro ou imitando um velocista olímpico antes da corrida. Ao contrário do Diógenes sinopense, este não vive num pito de barro mas sim entre nós. E, como todos nós, vai ao bar molhar as goelas enquanto a banda continua a tocar, retomando em seguida uma genial interpretação de Pills. Mas não se ficou por aqui neste capítulo.

Munido do microfone, foi perguntando aos convivas das grades o que estavam a beber e foi provando e dando o seu parecer – alguém convide os Les Savy Fav para as feiras do Alvarinho de Monção e de Melgaço, com urgência, até porque precisamos de mais uma dose dos “beijos portugueses” de Harrington.

Uma das representantes de Root for Ruin, disco mais recente da banda (e já lá vão treze anos), Dirty Knails foi mais um catalisador de porrada, que é para isso que serve uma quebra daquelas. Não faltou muito para o nosso Diógenes de Coura levar a letra a sério (“watch me crawl across the fucking floor for you”) e desatar a rastejar por ali fora, mas em vez disso serviu-se de uma grade (!) e invadiu novamente a plateia, como se estivesse a assaltar uma fortaleza.

Com uma maldita sobreposição no horário com outro nome monumental do cartaz, os Wilco, aproveitou-se a deixa de Let’s Get Out of Here para ir a atropelar pessoas e a cantarolar do palco secundário para o palco principal. Democracia em acção: a cantoria passa do palco para o público. Só se lamenta ter-se deixado ROME, malha de fecho, para trás. Mas que se lixe, que amor é Roma ao contrário e o fôlego seria recuperado em breve.

Mais revigorante do que muitas mezinhas, curas, cremes e elixires, tantos deles produto da ganância de vigaristas de laboratório ou de marketing, um concerto de Les Savy Fav é um poderoso antidepressivo, uma experiência holística e uma magnífica cápsula do tempo para juntar às acumuladas em trinta edições de Coura – memórias suficientes para alegrar um dia particularmente penoso que se venha a ter.

Nota? Concerto de uma vida/10, seguida de um palavrão “cabeludo” à escolha. Se por vezes ser português e viver em Portugal é um antídoto contra a felicidade, haja concertos destes para se exercer retorsão contra a infelicidade – não confundir com alienação nem com panem et circenses contemporâneo.

Memorável, incrível e inesquecível. Se a vida é uma sessão no Zoom, então os Les Savy Fav são a banda sonora e, durante, cinquenta minutos, livres habitámos a substância do seu cosmos.


sobre o autor

José V. Raposo

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