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Bem sabemos que já usámos o termo “instituição” para caracterizar bandas desta edição de Paredes de Coura, mas somos forçados, pelos factos, a apodar os Wilco, veteranos de muitas batalhas da alt-country, como uma instituição da música popular norte-americana que nos veio visitar, onze anos depois da última vinda. A travessia do deserto acabou num oásis de setenta e cinco minutos, mais coisa, menos coisa.
Poucos são os membros do clube de músicos que pertenceram a uma grande banda e menos ainda aqueles com cartão de sócio de terem sido membros de duas grandes bandas. É este o caso de Jeff Tweedy (e do baixista John Stirratt, sem contar com antigos membros de Wilco), membro fundador de Uncle Tupelo e de Wilco. Aqui acompanhado por Stirratt, Mikael Jorgensen, Pat Sansone, Glenn Kotche e, claro, Nels Cline.
Para quem desconhece ou, pior, ignora a country e o sucedâneo da alt-country (na qual Tweedy é criador angular), a obra dos Wilco oscila entre o pouco acessível e o incompreensível. Não soam como praticamente ninguém antes deles e, não obstante a sua influência, poucos de hoje em dia conseguem chegar perto.
A isto acrescente-se o efeito de serem uma banda de Chicago, sita no Centro-Oeste (vulgo Midwest) dos Estados Unidos, região onde as diversas cenas locais interpretam as vanguardas musicais de maneira muito própria. Não é à toa que as cenas punk e hardcore de Chicago nas décadas de setenta e oitenta tenham produzido bandas e personagens singulares, como os Naked Raygun, os Big Black do padre Steve Albini ou os Effigies de John Kezdy (RIP).
A solidez técnica dos membros é um dos maiores trunfos da banda e tal está plenamente à vista no concerto. Tweedy e Cline são um dos grandes duos de guitarra de sempre, como Verlaine e Lloyd, Ranaldo e Moore ou Stinson e Westerberg o foram. Concentradíssimos mas ao mesmo tempo descontraídos, como muitos mestres da sua arte.
E mestria e atrevimento foi aquilo com que brindaram o anfiteatro natural de Coura logo a abrir, com os dez ou onze minutos de Spiders (Kidsmoke), ode surreal krautrock na qual aranhas preenchem declarações de IRS numa praia fluvial no Michigan. A demonstração de força Tweedy-Cline atira distorção para tudo o que é sítio e serve de manifesto da instituição do rock alternativo que são os Wilco, com direito a paradinha e mar de palmas e coros do público antes de se embrulhar a canção e enviá-la para os anais do festival.
Jeff Tweedy apresenta-se como um tipo pacato cuja voz é (vá-se lá saber porquê, que o timbre nem é parecido) confundida com a de Neil Young. Porém, no meio da pacatez e como tanta gente, tem também os seus demónios, que em canção se entrecruzam com os dos Estados Unidos. Cruel Country, do álbum homónimo, serviu de (esplêndida) revisitação de Ashes of American Flags, um quase lamento sobre os perigos do patrioteirismo e da falta de consciência crítica.
I Am Trying to Break Your Heart, da obra-prima Yankee Hotel Foxtrot, é um certidão de que os Wilco são uma espécie de The Band do último quarto de século. As nuances de estúdio não só não se perdem como são ampliadas, muito porque o apuro da banda vem também de um senhor baterista, Glenn Kotche, tornado membro exactamente neste álbum e que tirou a noite para dar uma plêiade de texturas à performance. À medida que o concerto decorre, descobrem-se mais camadas e pormenores que só uma banda fulgurante consegue construir. É que de virtuosos em estúdio mas merdosos ao vivo está o Inferno dos palcos cheio.
Não parecia provável que os Wilco fossem banda para arrancar grandes folias do público, mas ao tirarem Random Name Generator da cartol-, do boné de Tweedy, houve lugar a crowd surf. Consideremos o gesto como uma congratulação do público à excelente exibição da banda.
Tweedy tira o chapéu ao público em agradecimento, este mal sabendo que estava prestes a levar com uma dose ainda maior de grandeza na sequência Jesus, Etc. e Impossible Germany.
Na primeira, numa toada mais soul do que em disco, Tweedy prega o amor como força motriz da vida – com vocais seguidores na congregação minhota. Ao contrário da letra, não foram edifícios altos a tremer, mas as árvores e muitas das almas ali presentes.
Melhor era impossível em Impossible Germany. Não falamos dos grupos F e H do Mundial de 2018, mas sim do momento em que a banda se atirou à dita malha, num episódio gigante do concerto e de Coura.
Caros senhores, tenham a certeza de que a letra mente, que vos estamos a ouvir. Ouvimos uma melodia cortante e uma sucessão de minutos de um solo de Cline que vale quatrocentos e cinquenta quilómetros de viagem e de Tweedy e Sansone a comporem o ramalhete – aquele entre o solo e o ritmo e este puramente no ritmo.
O caminho para a despedida fez-se com Dawned on Me, malhão que é uma montra de uma banda que faz o que quer e, por fim, com uma A Shot in the Arm que foi um pontapé nas ventas, um épico de pop psicadélica dos primeiros anos de Wilco aqui com uma transfusão de heartland rock. Na altura sem Cline, hoje com este a arrancar efeitos daqueles que tornam a canção numa majestosa malha cheia de elã.
Em disco ou ao vivo, os Wilco são como comer leitão de qualidade (o tronco nu é opcional): se a pele é já de si boa, o que vem a seguir é ainda melhor, com a batata frita da bateria de Kotche e os solos de Cline como o molho que enobrece o conjunto. O resultado final é satisfação geral.
Tal como quando acaba o leitão na travessa, fica o travo de que faltou mais qualquer coisa – e no caso de Wilco a lista é imensa, seja um clássico dos clássicos como War on War, uma You Never Know ou a novíssima Evicted. De qualquer modo, o que calhou foi incrível.
Os Wilco tentaram (e conseguiram) encher-nos o coração.