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No meio dos cancelamentos, das ausências em relação ao festival-mãe e das sobreposições de horário do nosso descontentamento, o nome da regressada PJ Harvey era dos maiores do cartaz, autêntica realeza deste Primavera Sound Porto do ano da graça de 2024. Realeza por histeria e mera genuflexão? Não, é mesmo porque, em trinta anos disto, Polly Jean Harvey passou de musa do rock alternativo e das power chords para artista multifacetada dona de uma obra maior – de todas as suas fases na música e, recentemente, na poesia.
Entre um disco recente, I Inside The Old Year Dying (Partisan; 2023), e um livro de poesia em dialecto de Dorset, Orlam, Harvey continua a expandir-se e a manter-se com assunto, mesmo que para isso tenha de alienar quem só a vê como arauta das guitarras. Pouca alienação se notou na romaria em direcção ao palco principal, que mais uma vez cercou os fãs mochileiros de SZA com gente que lhes era estranha – muita dela com o dobro da sua idade.
Com sinos a rebate no PA, foi a última a entrar em palco. Com uma banda onde continua a pontificar o grande John Parish, não nos deixemos enganar pelo seu ar seráfico e frágil, que muito encerra o olhar que Polly Jean Harvey nos lança. Por detrás daquele ar enigmático estão um coração e uma garra maiores do que aquele palco principal, como se verá.
De edição recente e para memória futura dá-se o arranque com Prayer at the Gate. Gesticulando suavemente e assinando falsetes superiores aos de estúdio, PJ Harvey introduz-nos no dialecto de Dorset, para ela um mundo ao qual dá seguimento em The Nether-edge, incursão ainda mais profunda no dialecto da terra que a viu nascer.
Tratando-se de concerto de revista de carreira, não foi preciso recuar muito para assistir aos primeiros momentos gloriosos. Treze anos de recuo cronológico até Let England Shake, esse monumento de carreira, e uma solene e magnífica sequência de This Glorious Land, Let England Shake e The Words That Maketh Murder.
No dia em que passaram oitenta anos desde a abertura de uma segunda frente na Europa com os desembarques dos Aliados ocidentais na Normandia, Harvey traz-nos três (grandes) canções sobre os horrores da guerra, como quadros de Otto Dix musicados. Mutilações físicas e mentais e todo um trauma psicológico infligido a uma sociedade que não pediu nada disso.
Todavia, se os combates na Segunda Guerra Mundial eram fundamentais para a sobrevivência do Reino Unido e da liberdade, a trapalhada no Iraque (e a estagnação no Afeganistão, que bem cara saiu aos britânicos em Helmand), contemporânea do disco, fracturou a sociedade britânica e elevou a desconfiança do povo e dos artistas a, bem, patamares como Let England Shake. A outro de The Words That… com os versos levantados a Summertime Blues de Eddie Cochran sobre levar-se os problemas pessoais às Nações Unidas é um pormenor genial de humor negro, muito pelo comentário sobre a crescente irrelevância daquela organização, cuja derrocada teve, para nós, o seu início precisamente no processo de fantochada jurídico-política de legitimação da invasão do Iraque, em 2003.
E dos inícios de carreira de PJ Harvey, nada? Pelo contrário, que boa parte da segunda metade do concerto foi dedicada aos tempos de Harvey como heroína das guitarras e (co-)salvadora do rock dito alternativo aquando da letargia pós-grunge. Caíam a noite e o cabelo de Harvey, em prenúncio do peso que se adivinhava.
Como homenagem tácita a Steve Albini e atestado da importância do homem no ADN do Primavera Sound fomos brindados com versões excepcionais de 50ft Queenie e Man-Size, obras-primas dentro de outra obra-prima, Rid of Me, cuja engenharia de som coube a Albini. E se neste disco havia já um som definido para aquela fase da carreira de PJ Harvey, houve também tempo para revisitar o single de estreia, Dress, com uma verve imaculada. Perfeitamente enquadradas na actual metamorfose de Harvey, as canções dos noventas não perderam nada com o passar dos anos, envelhecendo como bom vinho.
Em pose teatral e por vezes sentando-se numa mesa instalada bem no meio do palco como quem observa o caos, Harvey pouco ou nada precisou de dizer ao público para reinar; a primeira vez que comunicou com a plateia foi para pedir desculpa por aparentes problemas técnicos na guitarra, oferecendo-se para tocar as coisas de outra maneira. Tendo por “armas” uma Fender Jaguar, uma guitarra acústica e uma auto-harpa, se este concerto fosse uma guerra seríamos nós os derrotados pelo exército-de-uma-só-pessoa de PJ Harvey, uns Plantagenetas arrasados pelos Tudor em Bosworth.
Fim de concerto com mais uma ida aos noventas, via dois clássicos de To Bring You My Love como golpe de misericórdia: Down By The Water (esta para os distraídos) e a malhona homónima. Uma demonstração de força que, por nós, bem podia ter tido mais uma hora, que mal se deu pela passagem do tempo e em que muito ficou por tocar, mas quem tem um repertório impressionante arrisca-se a deixar muita coisa boa de fora.
Este escriba ficou um bocado como Ricardo III no final da obra homónima de Shakespeare: “um encore, o meu reino por um encore!”. É o preço a pagar por ver uma rainha imparável, intocável e cuja aura e música têm mesmo quinze metros de altura.