Reportagem


American Football

Quando a lenda dos American Football passa por nós como passou no Primavera Sound Porto só podia dar um grande passe para touchdown.

Parque da Cidade do Porto

06/06/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Chavões à parte, há bandas com uma aura de tal modo intensa que ouvir um disco seu já provoca pele de galinha. A mera perspectiva de poder ver essas mesmas bandas ao vivo e a cores leva a que se prepare um plano operacional, se marque a data no calendário (mental, em papel, no telemóvel, no computador, onde for) e se vá contando os dias e amainando certa (boa) ansiedade. Quando essas bandas são aquelas que ajudaram a construir a mística (não, não há aqui nenhuma hipérbole) do Primavera Sound, isto é, nomes lendários que se voltaram a juntar, que raramente tocam ao vivo ou, tratando-se de Portugal, que dificilmente cá passariam se não fosse em festival, a expectativa estende-se ao longo de meses – chamemos-lhes bandas “à Primavera Sound”. Trazendo à colação só os exemplos mais recentes, se no ano passado os Unwound deram um concerto daqueles de uma vida, este ano coube aos American Football, banda norte-americana de Urbana, no estado do Illinois, fazer uma figura um tanto ou quanto semelhante.

Como seria de esperar, as bandas “à Primavera Sound” são extremamente influentes, seja num nicho sónico específico (enquanto clássicos de culto) ou na música ocidental alternativa em geral (em especial no rock); as gerações seguintes trataram os seus registos como um Santo Graal que virou as suas vidas do avesso e/ou porque os discos são um porto de abrigo, aquele lugar especial para onde se volta quando se apetece ou quando é preciso. No caso específico de American Football, é impressionante como uma banda (nascida das cinzas da energia juvenil emo dos Cap’n Jazz, outro bastião) que na sua primeira vida andou por aí durante uns míseros três anos, que apenas deixou um EP e um LP (este que chega ao quarto de século este ano) homónimos, que acabou (como tantas) por ver expectativas defraudadas ter a influência que tem – e ter voltado com sucesso e consistência nesta segunda vida, coisa rara.

Não seria de admirar, portanto, que ao nosso lado no palco Plenitude (herdeiro espiritual do saudoso ATP) estivessem pessoas que escrevem música e pessoas que escrevem sobre música em palpos de aranha primeiro e em êxtase depois, que o concerto foi de ficar para as páginas de ouro do historial do festival. Assim é o império tímido dos primos Kinsella e de dois gajos chamados Steve.

Logo a começar, o crescendo de Five Silent Miles foi só por si arrasador, imensamente melhor do que a versão de disco – outra coisa não seria de esperar, que a malha é do primeiro EP dos rapazes, do tempo em que ainda estavam esparralhados no sofá a congeminar o som da banda – e com o que interessa já bem presente: guitarras à jangle, afinações pouco ortodoxas, tempos que mais parecem de math rock e um fundo emocional que é ontológico. Não, a banda não inventou o emo, mas pegou no vigor dos Embrace, Dag Nasty e Rites of Spring e deu-lhe um fulgor como muitas bandas do Midwest dão ao som no qual pegam.

Lá atrás nas projecções, a casa que serve de capa a dois dos LP da banda e que constitui a sua iconografia relembra-nos que este concerto é também comida de conforto auditiva e visual, ambas as dimensões envolvendo-nos e trazendo a lenda até à beira dos nossos sentidos. Com uma importância similar à da casa da Dischord, também nesta se encerram muita da mística e da história da banda. Talvez ali não se chegue à profundidade das interrogações filosóficas de Manoel de Oliveira numa casa que em tempos foi sua, mas o poder da obra criada e da nostalgia criaram um culto expresso na mera imagem daquelas tábuas e janelas.

Sendo nós daqueles cujo primeiro contacto com o grupo foi através de Honestly? (não estávamos sozinhos neste quesito, que a ovação aqui foi especialmente grande), naturalmente que a reacção psicossomática foi um encher de espírito e de peito quando soaram os primeiros acordes (e o arpeggio) de uma canção tão grande que faz uma carreira – e tão grande que envolveu três guitarristas, com um roadie a participar no glorioso cerimonial. Numa versão superior em tempo e execução à original, foi um incrível passe para touchdown.

Uma das singularidades do som dos American Football é a inclusão de um trompete em acumulação de funções do baterista, Steve Lamos. Se em estúdio é um arranjo que dá originalidade ao conjunto, ao vivo é de uma enternecedora elegância sónica, abrilhantando momentos como The Summer Ends, For Sure. e, sobretudo, The One With The Wurlitzer, na qual o trompete passa, sem tibiezas, de textura agradável para elemento melódico preponderante, esgotando-nos o stock de adjectivos.

Ainda que os dois mais recentes álbuns da banda (também intitulados American Football, pois claro) tenham a sua importância e qualidade, o alinhamento continuou a percorrer o gigante disco de estreia. Para alguns, isto será sinal de que a banda é só hype e que não vale o que se dá por ela; para quem realmente sabe (e sente), é sinal de relevância, de quem foi muito imitado mas raramente igualado, porque emo não é chonice nem choro, antes melodia para dar e vender, que até em bandas nada emo como os Real Estate se ouve esta lição. Nos que nos concerne, bem podiam ter percorrido toda a obra, que o mais recente disco tem uma lista de convidados-admiradores que até inclui Rachel Goswell dos Slowdive.

O acerto da banda é digno de nota, sendo a versão em cima de um palco da mítica West Coast offense de Bill Walsh, Joe Montana, Jerry Rice e afins: tudo muito certinho até certo ponto, com uma extensão das canções até limites magníficos, a que não é alheio o calo da banda nesta altura do campeonato.

E como neste Super Bowl de Junho o relógio também tinha tempo limite, Mike Kinsella agradeceu com um singelo “obrigado por terem ficado acordados até tarde por nossa causa!”, lançando-se a banda a um inacreditável derradeiro momento com Never Meant. Canção que deve ter dado origem a muita ideia e muita banda (e à maior ovação da noite), bem como a muita analogia da letra com fins de relação amorosa de quem a ouviu, nela a voz de Kinsella reverte para a do puto de vinte e poucos anos que já foi (e cuja jovialidade, esse elixir da juventude, continua lá) e os acordes são combustível, motores e flaps para todos levantarem voo na Air Felicidade.

A relação relatada na letra acabou, tal como a actuação. A primeira com o coração partido, a segunda com o coração a abarrotar.

As lendas cumpriram com distinção e louvor. Encomendem-se as faixas, que o campeonato está entregue e os anais da História do Primavera Sound Porto têm um capítulo reservado para este grande episódio.


sobre o autor

José V. Raposo

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