Reportagem


Tropical Fuck Storm

Quem disse que a tempestade não podia também ser uma bonança?

Parque da Cidade do Porto

07/06/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Apesar de não ser exactamente verdade que tudo na Austrália nos quer matar, há seres australianos que têm por objectivo eliminar-nos um órgão ou outro. Os Tropical Fuck Storm, banda australiana saída do hiato dos The Drones, têm no sangue destruir-nos os ouvidos com a quantidade de veneno noise que neles injectam. E não há mal nenhum nisso, bem pelo contrário – mas usem-se tampões nos ouvidos, porém.

Banda mais escorreita sonicamente mas bem mais agressiva do que os The Drones, é composta por Gareth Liddiard, Fiona Kitschin (casal que transita daquela banda e que assegura vozes, guitarra e baixo), Erica Dunn (guitarra e vozes) e Lauren Hammel (bateria). A agressividade é tanta que, por vezes, parece que estão em despique uns com os outros, em particular as guitarras. E nisto também não há qualquer mal.

Depois dos graves problemas de saúde que afectaram Fiona Kitschin no ano passado e que obrigaram ao cancelamento da actuação em Paredes de Coura, era finalmente chegado o tempo de uma passagem de Tropical Fuck Storm por cá. Se a tempestade prometida pelas previsões (???) da entidade nacional competente (só em sentido jurídico-administrativo, porque no resto…) não se verificou, nada como uma banda com “storm” no nome para agitar as águas e os corpos.

Se muito falamos de expansão (ou modificação, mesmo) do som de estúdio das bandas aquando das suas actuações, Brain Drops é mais um exemplo para o monte. Evocação volumosa dos Wire (ou dos Go-Betweens) com coros a três e com um nervoso miudinho de neura guitarreira, é de o dingo nos comer o bebé logo ali.

E o bicho nem deixou os ossos, que Antimatter Animals é o mais próximo que os Tropical Fuck Storm têm de uma balada. Por mais próximo diga-se uma distância entre o Porto e Melbourne, que balada para eles rima com jarda. Não há pescoço nem ouvidos (desprotegidos) que aguentem, que para além do dedo do meio bem-educado de maus políticos (e políticas) apontado ao povo vertido na letra (“your politics ain’t nothing but a fond fuck you”) há o pirete com distorção que os dos nossos antípodas nos atiram. Liddiard transforma a distorção em transe, Kitschin encarna a saudosa Poly Styrene na voz e Dunn e Hammel são o cimento do noise armado. Magistral na execução e no volume, é um envolvimento aos pobres diabos como nós que, em campo quase aberto, levam com a ofensiva australiana de 2024 em cima como os alemães levaram a de 1918 no Monte Saint-Quentin.

Quiçá um dos maiores elogios que se pode fazer a Tropical Fuck Storm é que as suas canções têm um substrato que as faz soar todas como Expressway To Yr. Skull dos Sonic Youth que, relembre-se, é uma malha com selo de aprovação de outro imperador das guitarras, o tio Neil Young. Dinastias de tormentas de que somos fervorosos adeptos.

Ainda que de Melbourne a Adelaide distem mais de setecentos quilómetros, uma analogia a fazer é a de os Tropical Fuck Storm serem o antigo circuito de Adelaide, mas com guitarras. Tal como o circuito cujo grande prémio em tempos fechava o calendário da Fórmula Um (quando a modalidade ainda valia alguma coisa e não se tinha transformado num bocejo lavador da reputação de ditaduras), de traçado aparentemente simples mas bem mais complicado na hora de nele se conduzir, a simplicidade aparente do material do grupo esconde uma sinuosidade sónica que só os mais calejados (como os próprios) almejam. O braço trémulo da Fender Jaguar (ou não fosse o Primavera Sound “o” festival oficial das Jaguars e das Jazzmasters) e os pedais de Liddiard trabalham como uma manete das mudanças e um pedal da embraiagem nos bons velhos tempos de Adelaide.

A luz vermelha de palco é uma metáfora para o coração ebuliente de You Let My Tyres Down, demonstração cabal do enlace entre barulho e emoção de Tropical Fuck Storm. Liddiard lamenta-se, ladra, flagela-se com acordes, Dunn rasga vestes melódicas e Kitschin e Hammel testam o sismógrafo. Momento maior da noite? Afigura-se que sim.

Numa banda que é o actual corolário da melhor escola australiana de rockalhada, uma homenagem a maiores de outros tempos (e de outras latitudes) caiu bem; Ann dos Stooges, outra aparente balada, tem aqui o fuzz dos deuses de Ann Arbor no Michigan substituído pela onda de distorção dos discípulos de Melbourne. Liddiard, que enfrentou a noite descalço, de mullet (muito em voga nos australianos que tocaram nesta edição), de t-shirt de Sailor Moon e com uma ventoinha a arrefecer-lhe a estrutura, alternava entre massacrar a guitarra e aviar nos pedais, como um homem numa missão, devidamente acompanhado por uma Erica Dunn que era o outro braço armado da banda. Falávamos nós de Sonic Youth mais acima? Por esta altura, em especial depois de Two Afternoons, já se pode considerar Liddiard e Dunn (esta também nas teclas) uma dupla ao nível de Thurston Moore e Lee Ranaldo. E, já que falamos de mestres, todo o concerto provocaria um sorriso maroto a Steve Albini.

Para finalizar, o paraíso noise de Paradise. Feedback até dizer chega digno de fazer qualquer otorrinolaringologista esfregar as mãos de contente (ou desesperar, se sobrecarregado de serviço no Serviço Nacional de Saúde), de fazer vibrar o relógio dito inteligente com avisos de que se ultrapassava os cem decibéis de ruído e de arranjar um pequeno mosh pit nas grades, foi o aguaceiro final do enorme concerto que foi a tempestade fodidona dos Tropical Fuck Storm. Sorrisos e suor para todos.

Quem disse que a tempestade não podia também ser uma bonança?


sobre o autor

José V. Raposo

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