//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
O século passado foi um de descoberta e fascínio com o Universo. O Homem foi à lua, num momento difundido pela televisão para um recorde de audiências, e Carl Sagan editou Cosmos, que despertou uma jovem geração para a (re)dimensão humana e efemeridade das nossas vidas. Subitamente, a nossa escala relativizou-se e não mais se considerou o planeta Terra como ordem maior – tudo se tornou infinitamente grande. O tempo, infinitamente elástico, e tudo o resto relativo – apenas um pálido ponto azul. E, claro, nós, reduzidos à nossa real relevância: o diametralmente oposto, o infinitamente pequeno.
Houve, ainda antes destes dois, um evento semelhante e de não menor importância: em 1968, à escala mundial, Stanley Kubrick preparou um filme que nos poria, também, em contraste com o tempo e espaço. O cinema como resposta às dúvidas existenciais (como muitos outros o imaginaram). Na imensidão do seu simbolismo e abstracção, evocou os tempos pré-históricos na supremacia animalesca do macaco, para mais tarde, numa lendária justaposição, acelerar a evolução do Homem e colocá-lo em órbita. Também ele tinha perguntas sobre a nossa condição. Como alguns mais curiosos, não sabia qual o passo seguinte para a Humanidade. E embora não nos tenha dado nenhuma resposta, sintetizou, para os anos vindouros, um retrato emocional dos que viveram, in loco, esses inebriantes anos.
O fascínio colectivo atenuou com o passar do tempo. Hoje, a luz nocturna da metrópole torna infrutífera qualquer tentativa de contemplar as estrelas, e o planeta perdeu o seu lugar no Universo, para ser, apenas, o nosso lugar. Em menos de quarenta anos, a Humanidade retornou ao seu casulo existencial.
Alguns anos mais tarde (muito ou pouco, agora será sempre relativo), estávamos em 1994 e juntavam-se à mesa vários argumentistas da Pixar, entre os quais se contavam Andrew Stanton e Pete Docter. Haviam terminado a primeira iteração de Toy Story, e participavam num selvagem brainstorm sobre possíveis ideias narrativas. Deste famoso almoço nasceram planos para A Bug’s Life, Monster’s Inc, e Finding Nemo – assim como uma ideia muito vaga e pouco esclarecida:
“Hey, we could do a sci-fi. What if we did the last robot on earth? Everybody’s left and this machine doesn’t know it can stop and it keeps doing it forever.” – Andrew Stanton
E assim, nasceu WALL-E, um dos últimos habitantes do planeta Terra, desabitado e irreconhecível depois de um desastre ambiental, no ano de 2804. Pequeno e desajeitado, as cores desbotadas pelo sol, cumpre com notável assiduidade a sua missão extraordinariamente simples e absolutamente insignificante: agarra um montinho de lixo, coloca-o dentro da gaveta com que vem equipado, e cospe um cubo prensado. De lixo, ainda, que amontoará depois. De que serve tudo isto? Fá-lo sempre acompanhado pela sua barata de estimação (chama-se Hal – faz lembrar alguma coisa?), e os seus dias são pontilhados de interacções com pequenos resquícios de humanidade – um cubo de Rubik, por resolver, um par de meias, uma gravação de uma música do filme Hello Dolly (1969), que vê e revê nos momentos de ócio chegado o final de mais um dia. Tanto quanto sabemos, ele será o único robôt que ainda trabalha. O que aconteceu aos outros?
Com tudo isto, depreendemos que WALL-E se tem educado. Ouve música, e vê a dança do filme; os seus olhos – inspirados num par de binóculos, diz Stanton – reagem e denunciam o que sente. Não só os seus olhos, como todas as expressões corporais, todas elas são profundamente humanas. E sabemo-lo, logo após a chegada de EVE, um robot mais moderno que tem a missão de encontrar vegetação na Terra, que nela projectou um fim para a sua solidão – um sentimento que, claro, herdou da humanidade. Ele olha-a e tenta interagir, mas ambos nunca foram dotados de linguagem. Aqui está a magia do filme, ou, pelo menos, de uma primeira parte do filme: a linguagem não é, afinal, necessária ao envolvimento emocional.
“I got a metal box falling in love with a metal box and a dystopian background, where am I going to get the intimacy?” – Andrew Stanton
Temos, então, uma primeira parte do filme passada neste cenário distópico, um planeta árido e esquecido pela humanidade, onde nada mais acontece além da interacção entre EVE e WALL-E. Curiosamente, e segundo Stanton, o argumento para o filme inclui vários diálogos explícitos, como referências para o que ambas as personagens tentam expressar; além disso, consta que, previamente à criação das animações, passaram dias a ver os filmes de Buster Keaton, uma referência da comédia física no cinema mudo. Conseguiram, ao longo da fase de animação, transportar emoções fortes, humanas, e raramente ambíguas. E sempre com ausência de comunicação verbal. A primeira meia-hora de WALL-E é sublime, silenciosa, até contemplativa, a espaços; uma quase-perfeita sequência de imagens, onde criadores, personagens, e público, estão em perfeita sintonia e comunicação.
Por tudo isto, não poderíamos alguma vez não recomendar o filme: por fazer tanto, mostrar tanto, com tão pouco. Mas, depois, há uma mudança extrema no filme quando a planta de EVE é encontrada e o filme transporta a acção para a nave espacial AXIOM, o refúgio espacial do Homem. Consuma-se a crítica à humanidade de agora – consumista, sedentária, irresponsável – enquanto, cinematograficamente, ficamos bem mais próximos do habitual frenesim de um filme de animação, ora não tivesse a Pixar um público muito específico: somos bombardeados de som, cores, e movimento, longe da ordem simples e espontânea do primeiro acto. Na AXIOM, os hábitos de vida e consumo estupidificaram o ser humano: o transporte é feito em cima de cadeiras hovercrafts, e a comunicação é levada a cabo por um filho bastardo entre o Skype e uma tela de VR; a alimentação é uma tarefa extremamente despersonalizada e comercial, como o são as vestimentas, e a noção de tempo livre não existe – porque não há tempo ocupado. A suspeita referência à obra de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, na qual é retratada uma sociedade dominada pelo prazer, e não pela coacção (como em 1984, bastião orwelliano), foi entretanto confirmada pelo realizador.
O passar dos anos, e o agudizar de uma pretensa capacidade de analisar e desconstruir os filmes, são factores que estranham a disparidade entre estas duas metades: como pode a singularidade, quase existencial) da primeira parte coexistir com uma espécie de revolta dos electrodomésticos datados, que não é mais do que um artifício para conseguir fechar a narrativa? Ainda assim, Wall-E sobrevive como um trabalho extremamente completo, uma meditação despretensiosa sobre a humanidade e a nossa efemeridade (e, porque não, fragilidade) como espécie. Lembrar-se-á, daqui por uns anos, tudo isto, e mais alguma coisa: o contributo dos grandes Roger Deakins, cinematógrafo e nome recorrente em obras maiores do passado, responsável por uma série de bons conselhos relativos à imagem da primeira parte, e Dennis Muren, a quem se deve uma preciosa ajuda na execução das animações; a inteligência emocional que mais tarde nos arrebatou em Inside Out (2015) está aqui presente, e, curiosamente, ambos os filmes foram (co-)escritos pela mesma pessoa: Pete Docter; para os mais crescidos, fica a apreciação da vida na nave AXIOM como uma caricatura do estilo de vida do povo ocidental; e até os cinéfilos rejubilam com as incontáveis referências ao (bom) cinema, a Odisseia no Espaço de Kubrick à cabeça, a quem Wall-E sugere uma série de mensagens.
Posto isto, e em jeito de despedida, deixo-vos esta óbvia recomendação. Auguro a Wall-E, com o passar dos anos, um lugar muito especial dentro da história da animação, assim como um papel simpático dentro do cânone do sci-fi moderno. Além das incontáveis referências a obras que o precedem (2001, Huxley, etc.), reinterpreta a mais estruturante das histórias – a união de dois – num cenário que a nós nos diz muito. Por isso, e muito mais, guardo este filme com a maior das estimas. Vejam-no!
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)