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Nos dias que correm, as coisas andam bem para certos amigos. Não, não nos referimos a antigos administradores de bancos ligados a partidos políticos nem a nomeações para gabinetes do Governo, mas sim à qualidade da música popular portuguesa contemporânea; à qualidade junta-se a variedade que, quando em colaboração, consegue criar como nunca se ouviu por cá.
Exemplo acabado disto é Terra do Corpo (crítica aqui), segundo e mais recente trabalho de originais dos MEDEIROS/LUCAS que são um exemplo de amigos a quem as coisas correm bem. O álbum, que conta com colaboração variada, tira, na maior parte das canções, grande partido dos convidados – tão variados como Carlos Barretto, Tó Trips, Filho da Mãe, Luís Lucena, António Costa (dos Ermo; piadas com o Governo à parte) e Selma Uamusse. Boas escolhas, que incluem uma belíssima voz, dois ases da guitarra, um homem da música “séria” e um membro de outra criativa dupla nacional.
O número 59 da Rua da Barroca, que no corrente ano tem assistido a vários lançamentos de álbuns nacionais, fez novamente as honras. Já se sabendo (e lamentando) que a maioria dos colaboradores em Terra do Corpo não marcaria presença (Filho da Mãe dedilharia ali para as bandas do Intendente), não se esmoreceu o entusiasmo pelo que aí viria.
Os MEDEIROS/LUCAS são uma banda sem pretensões; nada neles grita soberba ou vedetismo. A sua verve de palco é a de um ensaio: mesmo com a sóbria inquietação de Carlos Medeiros, todos estão descontraídos, mas competentes e concentrados no que fazem – os sorrisos e movimentos saem com naturalidade, nota-se que a banda desfruta da sua música e da envolvência. Em particular, Pedro Lucas assegura que as melodias da sua Telecaster orientam os ritmos de Ian Carlo Mendoza e Augusto Macedo, que acompanham as palavras de Carlos Medeiros.
A voz de Medeiros, tal como em disco, continua ao centro; é o que comanda as forças em palco. Começou o desfile das ditas forças com Sístole Perdida; mal se notou a ausência de Tó Trips e Filho da Mãe – esses ventos guitarreiros que foram e o vento do talento de Lucas que ficou para brilhar em palco, parafraseando a letra da canção. Os arranjos familiares mas paradoxalmente pouco convencionais já presentes em todo o seu fulgor.
Se os arranjos se aguentam com brio em palco, a voz de Medeiros mantém a sua pujança. Em Safra de Gente, com a qual se arrancou, declama com vigor que o Homem quer-se vertical – interpretando-se: no arquipélago dos MEDEIROS/LUCAS, na sua Utopia, todos são honestos e verdadeiros. Se já em disco nos é deixada essa impressão, ao vivo os pormenores orientais dos arranjos lembram uns Ocaso Épico, em cruzeiro pelo Pacífico; o carisma de Medeiros é diferente do de Farinha, mas a qualidade está lá.
Até aqui tínhamos andado sempre por terra, mas descolámos para Asas. Fazendo jus à letra, esperámos para dizer o que queria a banda: continuar no actual disco e ficar na magnífica Fome de Vento. À partida, a colaboração de Tó Trips e Filho da Mãe faria sempre falta, mas Lucas deu a volta e presenteou-nos com uma notável expansão do som de estúdio, começando aí a percorrer caminhos que não tínhamos ainda ouvido na sua guitarra.
As letras dos MEDEIROS/LUCAS (várias delas de João Pedro Porto) são do que melhor se faz por cá, incontornáveis. Sem vento o homem viu-se sofrido? Com concertos e discos destes, nós é que sofremos um pouco menos.
Voltou-se ao mar, com Fado do Regresso, mas a fome era nossa, plenamente saciada com a melhor canção da banda: Canção do Mar Aberto. A monumentalidade da letra e dos arranjos, qual dream pop do Atlântico, contêm a força da proa de uma nau e a energia de um cachalote e trazem-nos as ondas de praias como a do Almoxarife ou do Pópulo e encharcam-nos da essencialidade dos MEDEIROS/LUCAS enquanto projecto.
A flexão dos músculos sonoros continuou com outra putativa candidata a melhor canção da banda, Azougo. Disse Pedro Lucas que se tratava de um “acordar sem acordar, assim psicadélico”; com efeito, cumpre-se aqui a tradição já antiga de cruzamento de música popular portuguesa com o rock progressivo ou psicadélico. Já tínhamos pedido na crítica ao disco um prolongamento da parte final deste malhão, a que tivemos direito ao vivo – azougou-se ainda mais o aquário da ZdB com tudo isto.
Faltou Carlos Barretto em Sede? Recorre-se ao controlador MIDI e fica a dita saciada, mais até do que em disco, pese o respeito por aquele músico. Marcou-se falta a António Costa (o de Braga) em Transparência, integrando-se a lacuna com Mendoza e Lucas em grande, solando furiosamente e deixando as pedaleiras fumegando.
É de má educação deixar senhoras à espera e, como tal, Medeiros cede o lugar central a Selma Uamusse, convidada especial em Corpo Vazio, que reforçou o aviso de que é preciso ter cuidado com o corpo vazio. Da nossa parte e perante o poder de tal voz (e de tal dueto), o aviso ficou assente, num final de alinhamento principal em grande.
Levantou-se âncora, deu-se às máquinas e o astrolábio do encore levou-nos a Fado do Marujo; este marinheiro, ao contrário do de Yukio Mishima, perdeu as graças mas da terra. Só a lonjura dos mares lhe dá alento. Como os MEDEIROS/LUCAS são uma banda atípica, zarpa-se apenas no fim do concerto, com Navio, outro ponto alto. “Adeus que me vou/Quem sabe até quando”, canta Carlos Medeiros – esperemos que o regresso não tarde. E Pedro Lucas a dar uma de Kevin Shields com a guitarra, pedais e amplificador a levantarem vagalhões.
Mare Clausum e nós por cá ficámos em terra, à espera de notícias futuras destes “Quixotes perdidos em alto-mar”.