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Helmut Berger, Actor
Título Português: Helmut Berger, Actor | Ano: 2015 | Duração: 90m | Género: Documentário, biografia
País: Áustria | Realizador: Andreas Horvath | Elenco: Helmut Berger, Viola Techt, Andreas Horvath

Helmut (Stein)Berger tem uns joviais 71 anos e 11 meses. Helmut Berger já foi considerado o tipo mais bonito do mundo – Warhol e Newton imortalizaram-no em fotos. Helmut Berger é actor e entrou em filmes (e foi amante) do mestre Luchino Visconti e do mestre espanhol da ordinarice, Jess Franco. Helmut Berger é um poliglota que fala pelo menos quatro línguas – alemão, italiano, francês e inglês; com certa proficiência, diga-se – e que é um cosmopolita que não reflecte a sua actual morada e condição. Helmut Berger tem amigos e amigas do jet set que não se dão com qualquer um. Helmut Berger considera-se italiano.

Não, o parágrafo anterior não foi escrito por Helmut Berger, mas podia tê-lo sido. Contudo, Helmut Berger teve gente suficientemente paciente para aturar os seus devaneios e petulância e filmar um documentário sobre si: Andreas Horvath, que nos traz Helmut Berger, Actor, de 2015.

Se muitas histórias contadas na película são viagens, esta começa numa casa desarrumada, decadente e de decoração de gosto magano (os nossos primeiro, que há fadistas que lembram Berger no seu feitio), com um septuagenário acabado de acordar e que começa o dia masturbando-se e fumando; estamos no habitat de Helmut Berger, que nos recebe assim, como um slacker displicente. Logo de surra, enquanto vê televisão, atira que Horvath também deveria escrever um livro sobre o suposto roubo de que foi alvo pela família Visconti: propriedades em Ischia e Castel Gandolfo, em Itália, que Berger quis para si, enquanto companheiro de Visconti.

Helmut Berger 2

Sobressai imediatamente que Berger se crê uma estrela e que todos lhe devem. Horvath gravou conversas telefónicas com Berger que são mais monólogos em várias línguas do que outra coisa – dar-se-ia muito bem a comunicar com adolescentes ou adeptas do Tumblr, certamente. Repete-se aqui a referência já feita por outrem que Berger é uma Norma Desmond/Gloria Swanson em Sunset Boulevard. Reconstituindo hodiernamente a cena do filme de Billy Wilder e com o que vemos entre Berger e Horvath, teríamos algo nestes moldes: “senhor Horvath, estou pronto para o meu grande plano! E para lhe fazer um felácio”.

Sucede que Andreas Horvath não é Joe Gillis – não se deslumbra nem é um bajulador do seu retratado. Resiste estoicamente às perversões sexuais de um actor que já viu melhores dias e que vive numa bolha de que parece não (querer) sair; ainda sobre as perversões, declara, com pompa, que abaixo de ménage à trois era derrota, mas que agora é mais excitante imaginar a cena na cabeça, que a máquina funciona melhor assim.

Por falar em máquina, entra em cena Viola Techt, empregada doméstica de Berger. Como qualquer empregada deste mundo, dá uma de alcoviteira e de adepta do paranormal e new age, confidenciando, ao limpar uma fotografia da mãe de Helmut, que o mestre de reiki do vizinho (que consegue “sentir estas coisas”) conseguiu descortinar que o actor temia a mãe. Mais ainda, determina que a mobília de Berger é de fraca qualidade e que as flores são de plástico.

Chegados aqui, cabe aqui estabelecer que Helmut Berger, Actor é uma obra de alegorias e de metáforas. A ida à esteticista e massagista leva-nos a um dos filmes que protagonizou: Il dio chiamato Dorian, de Massimo Dallamano, baseado na obra de Oscar Wilde. É um Dorian Gray ao contrário, que tudo faz para se manter jovem, ainda que não o seja (hematomas a cuja origem não é dada resposta), mas Berger em filme nunca mudará. Beleza que diz intemporal, tal como o talento: noutro monólogo telefónico, enumera os prémios que venceu, incluindo um Globo de Ouro, e a interpretação em Il giardino dei Fizi-Contini (Vittorio de Sica), que lhe valeu um Óscar de melhor filme estrangeiro, em 1971.

Helmut Berger 3

A carreira do actor afundou-se com a morte de Visconti, tornando-se como os atletas que são cancros de balneário (chegando até a tentar o suicídio) – faceta de feitio que ainda se nota. Continua a procurar o grande momento, como quando deu uma de travesti e encarnou Marlene Dietrich em La caduta degli dei, de Visconti; aqui, o paralelismo de Martin, a personagem, com o Helmut que temia a mãe. Berger continua a fumar – e segura o cigarro como o fazia em Gruppo di famiglia in un interno, no qual foi amante de uma marquesa. Ou Berger é um actor do Método ou então nunca largou a personagem, dada a irresponsabilidade que dele emana, como o rei Luís II da Baviera, em Ludwig.

Nova metáfora: o mau tempo nas montanhas austríacas em paralelo com a depressão do actor. Os retratos de Bardot, o ódio contra Brando e a coscuvilhice sobre a mulher de Bertolucci e Maria Schneider. Perante a veneração que presta a Visconti e Romy Schneider, confirma-se que Berger nunca largou as personagens. E, com tanta evocação, esquece-se (?) de pagar as contas do telefone e não tem cozinha em casa.

Não fosse Viola Techt e o outrora apogeu da beleza masculina nem teria meios para aquecer uma sopa enlatada. Outra metáfora: a banheira cheia de quinquilharia acabada de lavar pela empregada compara-se com a vida emocionalmente tumultuosa do actor; aqui se vê a sombra de um casamento falhado, vários amantes e Visconti, sempre ele.

Quando se começa a imaginar que Berger é um eremita, somos levados de avião até uma das localidades que Berger enumera que nem uma “tia” de Cascais ou da Foz como segundas casas: Saint-Tropez (pronunciada impecavelmente). Num hotel de luxo, é recebido como se fosse um Mastroianni ou um Newman; também aqui tem empregadas para lhe desfazerem a mala e aturarem caprichos – entre hilariante e causadora de vergonha alheia, a sequência de quando exige mais luz no pátio do hotel é reveladora das insinuações de Berger. Os planos fechados e tremedouros de Horvath não conseguem senão fixar-se nos maneirismos de uma primadona septuagenária, que dispensa a populaça e passa o Natal numa discoteca e o Ano Novo vendo o fogo com uma das amigas rycas.

Helmut Berger 4

Raramente vemos Horvath, que segue a antiga semi-estrela com alguma tensão. Tensão esta que rebenta num diálogo (70/30 em favor de Berger, vá) no qual o retratado despede pela terceira vez o documentarista e dá ares de indolente, ordenando-lhe que ligue a televisão, pois desconhece “aquele tipo de telecomandos”. Pior: dá uma de presunçoso e diz que está a educar um “campónio de Salzburgo” nas lides do jet set.

Transparece, que nem ancas à mostra num prostíbulo, que Berger vive de ilusões; acentua as supostas amizades com milionários e contrapõe que Horvath prefere filmar cantoneiros, já que lhes dá mais importância do que a “pessoas sem mérito mas com dinheiro”. Tudo para casa, que acabou o filme? Não, que Berger diz que está apaixonado por Horvath – “violência e paixão” de mais um capricho de vedeta. Não, Helmut Berger não é um excêntrico silencioso como Bruno S..

No seu meio de convívio, vemos Helmut pavoneando-se na casa de amigos, mas em busca de conversa e não com um séquito atrás de si. A altercação entre o actor e o realizador, já de manhã (não foram ao Europa, portanto), é exasperante: começa com um táxi que não chega e acaba com Berger a parar, no meio da rua, um carro da polícia, condenando Horvath por ofensas à integridade física logo ali – ainda que tenha sido a ex-vedeta a começar, insultando o realizador em várias línguas.

Também em Helmut Berger, Actor há luta de classes: Berger, o antigo amante de aristocrata e filho de hoteleiros, burguês até ao tutano, acusa Horvath de ser um mero burguês que nada sabe e que pertence aos arrabaldes de Salzburgo. Como tal, Berger até lhe faz um favor ao permitir-se ser filmado.

Passamos de Saint-Tropez para o bas fond: de volta ao quarto bafiento e de pouca luz, sob o olhar fixo de Visconti e Romy Schneider. Berger urra, guincha, grunhe como o exibicionista que é enquanto dá freneticamente uso ao Cialis que tem na mesa empoeirada na sala. Continua a dar ordens a Horvath: precisa da carne deste para ter uma imagem mental e chegar à pequena morte, à kleine tod. O antigo homem mais bonito do mundo tem agora um esgar que lembra um quadro de Francis Bacon. Quando lá chega, a impressão reinante é a de que estamos algures numa cabina de sex shop numa zona pouco recomendável de uma cidade. Os montes de Salzburgo choram e a caxemira de Berger é que se tramou.

Helmut Berger 1

Planos cada vez mais (admiravelmente) claustrofóbicos, que bem ilustram a bolha em que vive Helmut; a degenerescente ânsia por escândalo que o prejudicou e esgotou a vontade de outros trabalharem com o seu limitado talento. Despede Horvath uma última vez mas, vencido pela solidão e pela sede de protagonismo, volta a convidá-lo para uma ida à sua ostra de betão.

E despedimo-nos nós do filme e de Viola Techt, que entretanto deixou esta vida – apropriada Elegie de Wagner na banda sonora. Helmut não sabe quão sozinho está, mas esse é um filme que não queremos ver.


sobre o autor

José V. Raposo

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