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Em plena Guerra Fria, um cientista americano (Paul Newman) desloca-se com a sua noiva e assistente (Julie Andrews) até Estocolmo para assistir a uma conferência sobre Física. No entanto, aquilo que prometia ser uma estadia breve ganha outros contornos quando o cientista revela à noiva a sua vontade de não regressar ao país de origem. Essa decisão torna-se ainda mais chocante para ela quando descobre que o cientista se prepara para partir para a República Democrata Alemã. E a dúvida levanta-se: será que ele é, no fundo, um agente ao serviço do inimigo político? Será que todo o trabalho que desenvolveu no Ocidente serviu apenas para servir os interesses do Bloco de Leste?
Cortina Rasgada tem a fama de ser um dos filmes de Hitchcock de que este menos se orgulhava de ter realizado. Aliás, o mestre do suspense nem sequer quis que a cena com a sua aparição no filme (uma imagem de marca do cineasta) fosse visível no trailer de promoção, precisamente por não se sentir totalmente identificado com a obra. Na verdade, os problemas começaram logo com a escolha de Bernard Herrmann para a composição da banda sonora. É que Herrmann, apesar de ter colaborado com Hitchcock nalguns dos seus melhores filmes, e com algumas das mais lendárias bandas sonoras de sempre da história do cinema (basta pensar em Psycho, Vertigo ou Intriga Internacional), não agradava aos produtores do filme, que preferiam Henry Mancini. Hitchcock defendeu o seu colaborador contra as interferências exteriores, mas depois de ouvir os temas compostos por Herrmann, sentiu-se tão desiludido, que nem sequer os utilizou na montagem final. E foi dessa maneira que acabou uma das mais criativas parcerias entre música e imagem que o cinema nos ofereceu.
Mas houve mais conflitos durante a produção, nomeadamente entre o realizador e a sua estrela principal, Paul Newman. Hitchcock queria que esse papel fosse atribuído a Cary Grant, um dos seus actores-fétiche e com quem se entendia na perfeição. No entanto, como Grant foi considerado demasiado velho para o papel, o realizador teve de se “contentar” com aquele que era na altura o actor mais popular de Hollywood, mas cujo estilo de representação (herdeiro do “método”) pouco ou nada tinha a ver com o universo hitchcokiano.
O mesmo se terá passado com a escolha para a actriz principal, que Hitchcock queria que fosse Eva Marie Saint (no fundo, a sua intenção era repetir a parceria que tão bons resultados tinha dado em Intriga Internacional), mas, mais uma vez, teve de se “contentar” com aquela que era a estrela mais popular da altura, Julie Andrews, acabadinha de sair de Música no Coração. Todas estas questões desgastaram Hitchcock, que não estava habituado a ver defraudados os seus desejos artísticos, e naturalmente minaram a sua apreciação por uma obra que fugira do seu controlo absoluto.
No entanto, é precipitado julgar que Cortina Rasgada é um filme falhado. Aliás, o tempo tem feito bem a este filme, mais desconcertante e, simultaneamente, realista do que muitos dos clássicos do realizador. Há, durante quase toda a obra, um clima de incerteza quanto às motivações da personagem principal que chega a ser angustiante para o espectador. Isso resulta não só da direcção de Hitchcock, mas também da interpretação de Paul Newman. É precisamente por não ser o herói típico de Hitchcock, por ser um actor mais introspectivo e denso do que um James Stewart ou um Cary Grant, que o filme ganha uma carga tão ambígua.
De resto, Cortina Rasgada reflecte a mudança que o mestre operou no seu cinema durante os anos 60. Claro que se mantêm as obsessões de sempre, mas nota-se um tom mais amargo e cru, tanto na caracterização das personagens, como no tratamento da narrativa. Até nos próprios diálogos das personagens ou no modo como a violência é filmada. Se houvesse uma votação para o assassinato mais bem filmado de toda a obra de Hitchcock, o de Janet Leigh em Psycho seria provavelmente o eleito, até por ser o mais famoso. Outros poderiam também recordar o assassinato de Karin Dor em Topázio, filmado em plano picado, com o vestido roxo da personagem a espalhar-se pelo chão como se fosse uma flor a desabrochar (ou uma poça de sangue a alastrar-se). A dualidade entre beleza e morte era uma marca registada no cinema de Hitchcock.
No entanto, se tiver de escolher o assassinato mais brutal filmado pelo mestre do suspense, a minha escolha vai para o da personagem Gromuk (Wolfgang Kieling) em Cortina Rasgada. Uma sequência cruel e angustiante, com Paul Newman e uma figura feminina que ele acabara de conhecer e com quem não se conseguia entender em termos linguísticos (ele só fala inglês, ela só fala alemão), mas que naquele momento se torna sua cúmplice na luta pela sobrevivência. Há até qualquer coisa de sexual no modo como essa morte é filmada, uma mistura de prazer e alívio. A metáfora do orgasmo nas cenas de assassinatos é um motivo recorrente no cinema de Hitchcock. Como no início de A Corda, por exemplo, um dos filmes da sua própria filmografia de que Cortina Rasgada faz eco – os outros são, entre outros, O Homem que Sabia Demais (a versão de 1956), 39 Degraus e Psycho.
Outra agradável surpresa do filme é a personagem de Julie Andrews, num registo e com uma imagem muito diferentes daqueles a que nos habituara. O modo como ela, ao descobrir a “traição” política de Newman, manifesta um choque sem histerismos, apenas com o olhar de quem não acredita na sua própria visão, é notável. E não deixa de ser curioso que tenha sido Andrews a primeira actriz que Hitchcock filmou numa cena de cama. No fundo, até se enquadra no sentido de humor do cineasta. Numa altura em que a censura em relação ao sexo, no cinema americano, estava a ser colocada em causa, até pelas próprias transformações sociais no país, nada melhor do que utilizar a actriz de Música no Coração e Mary Poppins para representar essa libertação sexual.