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As mulheres, no cinema de Paul Verhoeven, nunca se assumem como vítimas. Nem depois de serem espancadas e violadas na sua própria casa por um homem encapuzado. E é exactamente isso o que acontece a Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), logo no início deste filme. Em vez de apresentar uma queixa nas autoridades e pedir apoio psicológico, ela reage com uma racionalidade imperturbável: muda as fechaduras de casa, faz testes para detectar doenças sexualmente transmissíveis e compra um martelo e uma embalagem de gás-pimenta para se defender de eventuais ataques no futuro. Ao mesmo tempo, decide investigar o crime por conta própria, convicta de que o atacante será alguém que ela conhece. E ainda mais certa disso fica quando começa a receber mensagens anónimas no telemóvel que evidenciam que o seu quotidiano está a ser observado pelo homem que a violou. Inicialmente, Michèle acredita que se trata de um funcionário da empresa de videojogos que dirige (e onde as suas decisões nem sempre são aceites de bom-grado). Mas quando descobre que, na verdade, o violador é um homem que ela admira e por quem se sente atraída, aquilo que inicialmente encarara como um acto criminoso, torna-se uma espécie de relação com contornos sadomasoquistas.
Falar de Ela, até pelo próprio título do filme, é inevitavelmente falar da interpretação de Isabelle Huppert. E se é certo que esta figura misteriosa e vingativa, fisicamente frágil mas indestrutível interiormente, parece ter ser sido criada para se encaixar no perfil que a actriz tem construído ao longo da sua carreira, o mérito é, acima de tudo, dela. É Huppert que torna “sua” uma personagem que fora proposta, anteriormente, a cinco actrizes de Hollywood, bem mais jovens do que ela e quase todas de primeiro plano. Sim, é verdade. Antes de ter conseguido financiamento em França para rodar o seu primeiro filme nesse país, Paul Verhoeven contactou Cate Blachett, Kate Winslet, Julianne Moore, Nicole Kidman e Diane Lane, e todas recusaram o papel. Tantas actrizes de Hollywood que se queixam de que a indústria não tem papéis relevantes para mulheres na meia-idade, mas depois aparece uma figura desafiante e singular como esta, e ninguém arrisca a pele para a defender.
Verdade seja dita: Michèle Leblanc é uma personagem intimidante, não só pelas brutais cenas de violação a que é sujeita, mas pelo facto de a sua personalidade resistir a rótulos e padrões. É demasiado fria e sarcástica para procurar a compaixão do espectador que, mesmo tomando o seu partido devido à violência a que foi sujeita, não deixa de sentir alguma ambivalência em relação ao seu comportamento. Não só pela indiferença e superioridade que exibe em relação a quem a rodeia, não só por ser amante do marido da sua melhor amiga, não só por seduzir o marido da vizinha, mas também por ser, indirectamente, responsável pela morte de três personagens, sendo que duas delas são os seus próprios pais. E é aqui que reside uma das chaves do mistério de Michèle: quando ela tinha dez anos, o pai, um cidadão até então exemplar e católico convicto, assassinou num dia todos os seus vizinhos, incluindo crianças, e os animais domésticos deles. Condenado a prisão perpétua, ele estará sempre presente na vida de Michèle, mesmo que ela se recuse a ir visitá-lo.
Mas falar de Ela, por mais dominante que seja a presença de Isabelle Huppert, é, claro, falar de Paul Verhoeven e da sua visão sobre o bem e o mal, que para o cineasta holandês são conceitos siameses, que dependem mais de um contexto do que do carácter das personagens. E todas as personagens de Verhoeven, por mais racionais e sociáveis que aparentem ser, têm um instinto para domar e que está para além de qualquer moralidade. A figura central do filme pode estar na mira de um predador, mas é também ela um animal à solta. E se há algo que Michèle revela, através da maneira como o seu quotidiano é filmado (sempre com naturalidade e dinâmica por parte de Verhoeven), é que é uma mulher não olha a meios para atingir os seus fins. Por isso é que ceder à condição de vítima é uma hipótese que ela nem sequer coloca. Pelo contrário, o seu humor negro e o modo como desvaloriza a preocupação que manifestam aqueles que lhe estão mais próximos, só provam que está bem consciente da sua própria natureza e do mundo em que vive.
Seria curioso ver um realizador como Paul Verhoeven, tantas vezes acusado, ao longo da carreira, de ser misógino, tornar a sua personagem central num símbolo do feminismo. Mas Michèle é demasiado individualista para representar qualquer causa que esteja para além dos seus interesses pessoais. A sua única causa é a sobrevivência. Não a sobrevivência amargurada ou envergonhada de quem se deixa controlar pelo medo, mas a de quem enfrenta a realidade de cabeça erguida. E nisso é também uma personagem muito próxima da que Carice Van Houten interpretou em Livro Negro, que o mesmo Verhoeven realizou em 2006 e que representou uma espécie de renascimento criativo para o cineasta depois do seu período americano.