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The Dead não é propriamente um filme sobre o Natal, mas é dos filmes que melhor traduzem a experiência de viver esta quadra, com tudo o que ela tem de reconfortante e melancólico. E com as memórias que só ela é capaz de despertar.
A história, inspirada no conto homónimo de James Joyce, centra-se numa noite de Natal do início do século XX. O encontro de familiares e amigos em casa de duas velhas irmãs serve para celebrar a data, mas também para evocar a cidade de Dublin e as histórias e paixões daqueles que a habitam. Incluído nesse grupo de personagens, mas sentindo-se à margem da maior parte delas, encontra-se Gabriel, a figura central. Durante toda a noite, por mais que tente, ele não consegue desfrutar do simples prazer do convívio, mesmo que esteja acompanhado da mulher, Gretta. As características que reflectem a alma irlandesa (o patriotismo, o gosto pela fantasia e por música) estão ausentes da personalidade individualista de Gabriel, que, talvez por se sentir intelectualmente superior aos outros, é incapaz de agir com a naturalidade que vê naqueles que o rodeiam.
Quando a festa chega ao fim, Gabriel presencia uma imagem que volta a despertar nele o desejo pela mulher: a visão de Gretta a ouvir um dos convidados a cantar um tema que a deixa abstraída de tudo à sua volta. Gabriel não se apercebe da qualidade emotiva da música, admira apenas a imagem de Gretta e o modo encantado como ela ouve aquela voz. Mais tarde, quando volta a ficar a sós com a mulher num quarto de hotel, Gabriel imagina uma noite de amor. Mas é nessa altura que ela lhe fala, pela primeira vez, de Michael Furey: um rapaz que a cortejara na juventude e que lhe costumava cantar essa mesma canção. Furey, que era um jovem com uma saúde frágil, acabaria por morrer com 17 anos, mas Gretta acredita ter sido ela a responsável pela sua morte. Porque foi por causa dela, para poder estar junto dela, que aquele jovem doente e febril enfrentou a chuva e o frio do inverno, mesmo sabendo que estava a arriscar a vida. Ao ver as lágrimas da mulher a falar sobre Michael Furey, Gabriel toma consciência de como nunca conseguiu despertar nela um sentimento tão profundo como aquele rapaz, cuja existência ele ignorara e de quem nunca ouviria falar se Gretta não tivesse escutado aquela canção na noite de Natal. Já depois de a mulher adormecer, Gabriel, a observar pela janela do quarto a neve a cair, reflecte sobre o facto de a mulher, até então, lhe ter ocultado a recordação mais preciosa da sua vida. E reconhece que, apesar do afecto que sente por Gretta, nunca conseguiu sentir um amor tão forte que lhe permitisse dar a sua vida por ela. Como Michael Furey havia feito.
John Huston foi um dos realizadores mais ecléticos que Hollywood já conheceu. Estreou-se no cinema noir, com The Maltese Falcon, mas depois realizou westerns, policiais, dramas históricos, biográficos e psicológicos, comédias, thrillers, musicais, filmes de aventura, de guerra e espionagem e até um filme sobre futebol (Fuga para Vitória). Uma versatilidade que acabava por espelhar a própria vida de Huston que, antes de se tornar realizador, havia sido pugilista, jornalista, dramaturgo, soldado da cavalaria mexicana e estudante de pintura em Paris. Mas talvez por isso, por se ter aventurado por tantos géneros cinematográficos, a qualidade dos seus filmes não tenha sido consistente ao longo de uma carreira de mais de 40 anos. Tem, no entanto, vários clássicos absolutos no seu currículo e alguns títulos que, embora pareçam ter caído no esquecimento dos cinéfilos, merecem ser redescobertos. The Dead é um destes casos.
O filme estreou no Festival de Veneza de 1987, poucos dias depois de John Huston morrer. Inevitavelmente, essa morte acabou por influenciar a maneira como The Dead foi recebido pela crítica, que não demorou relacioná-la com o próprio título do filme. Na verdade, o realizador já estava gravemente doente na altura das filmagens. Estava confinado a uma cadeira de rodas e, devido ao enfisema pulmonar que lhe fora diagnosticado, era incapaz de respirar mais de 20 minutos sem o auxílio de uma garrafa de oxigénio. No entanto, nenhuma dessas limitações o impediu de levar ao fim uma obra que, obviamente, encarou como o seu filme-testamento. Não só pela temática e sensibilidade do texto, mas pela maneira como todo o projecto foi desenvolvido. Maioritariamente interpretado por actores irlandeses (e é preciso não esquecer que Huston viveu durante vários anos na Irlanda e que tinha dupla nacionalidade, pois desde os anos 60 que se havia tornado cidadão desse país), foi também o único filme em que conseguiu juntar dois dos seus descendentes: a filha Anjelica, que interpreta o papel de Gretta, e o filho Tony, que adaptou o conto de Joyce para cinema.
Quando se é realizador e amante de literatura, como John Huston era, a tentação de adaptar para cinema uma grande obra literária chega a ser irresistível. Como todos sabemos, é muito frequente um grande livro resultar num filme mediano. Huston nunca temeu o risco de adaptar para cinema grandes livros, e fê-lo com obras tão distintas entre si como The Red Badge of Courage, Moby Dick e Under the Volcano. Se é certo que nenhum desses filmes resultou numa obra-prima, é também verdade que a sua qualidade em nada envergonha a fonte que os inspirou. Com The Dead, no entanto, Huston foi mais longe do que havia conseguido ir em qualquer uma das suas adaptações anteriores, principalmente na direcção de actores, que parece tão intuitiva e espontânea, e na atmosfera verdadeiramente familiar nostálgica que os envolve. Mais do que ter sido fiel à história, Huston conseguiu traduzir em imagens a escrita simultaneamente introspectiva e musical de Joyce. E esse era o grande desafio que, aos 80 anos e consciente da proximidade da morte, o realizador havia colocado a si mesmo.