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Vidas Inquietas foi a melhor solução que o tradutor português conseguiu arranjar para Angel Face, um clássico adormecido dos anos 50. E o título português não só é insípido, uma vez que se podia aplicar a milhares de outros filmes sem identidade própria, como é também infeliz, pois esvazia por completo a ironia que o título original transmite. Porque se há personagem que merece ser descrita como uma diabinha com cara de anjo é esta Diane Tremayne, a que Jean Simmons deu vida, e que nem Robert Mitchum (no papel de Frank Jessup), habituado a lidar com mulher fatais e imprevisíveis, conseguiu domar.
Dirigido por um dos mestres do cinema noir, Angel Face é um filme sobre a diabolização da figura feminina e o modo como ela condena à fatalidade os homens de quem se aproxima – uma fórmula muito cara à Hollywood daqueles tempos. Ao contrário de outros clássicos de Otto Preminger, como Laura (1944) e Fallen Angel (1945), que têm uma iluminação estilizada que confere uma carga ainda mais enigmática aos enredos, este Angel Face dá, inicialmente, a impressão de se tratar de uma obra dirigida por um artesão sóbrio e competente, mas sem um estilo demarcado. A certa altura, no entanto, apercebemo-nos de que se trata de uma estratégia de Preminger para surpreender o espectador em dois momentos absolutamente fulcrais, quase dementes pela sua brutalidade, mas que condicionam de forma definitiva a sua análise. Dois golpes de asa que são, no fundo, uma repetição da mesma cena, mas com diferentes personagens. Dois acidentes mortais de carro, dois homens e duas mulheres que perdem a vida por vontade de uma só personagem, a tal “angel face” do título. É que depois de provocar involuntariamente a morte do pai (era apenas a madrasta que ela queria que morresse, e aqui é inevitável uma referência ao complexo de Electra), ela aceita sacrificar a própria vida para impedir o marido de a abandonar e humilhar, ao voltar para uma antiga namorada. No cinema noir, o maior inimigo de uma mulher é sempre outra mulher, aquela que lhe rouba o homem de quem se sente mais cúmplice. O argumento, com inevitáveis ressonâncias psicanalíticas, ganha sentido pela elegância com que é filmado. Apesar de, em termos de verosimilhança, exigir alguma dose de boa vontade ao espectador (tem coincidências a mais e vazios narrativos que os diálogos não cobrem na totalidade), o universo de Angel Face é construído de modo tão fluído que transmite uma noção de naturalidade a tudo o que por lá se desenrola.
“Do you love me, Frank?”, pergunta Jean Simmons. “I suppose it’s a kind of love. But with a woman like you, how can a man be sure?”, responde Robert Mitchum com aquele olhar sonolento e altivo de quem já não se consegue surpreender com nada neste mundo. Um olhar tão irónico como icónico, e que o próprio actor dizia resultar de uma combinação da insónia crónica de que sofria e dos ferimentos provocados pelos golpes que levou nos seus tempos de pugilista. Mitchum, a quem a Cinemateca Portuguesa dedica este mês de Janeiro uma retrospetiva, em homenagem ao centenário do seu nascimento, era daqueles intérpretes que faziam do underacting uma forma de arte. Por mais desapaixonada que fosse a maneira como ele se encarava a si mesmo enquanto actor, as suas personagens transmitiam carisma e uma espécie de maturidade rebelde. Não era uma estrela condenada a fazer sempre o papel de herói charmoso (como um Gregory Peck ou um Cary Grant), mas uma figura magnética e possivelmente transgressora, que não se deixava dominar por ninguém.
Em Angel Face, no entanto, Otto Preminger soube contornar essa imagem de marca de Mitchum e torná-lo uma figura mais vulnerável. Tão vulnerável que se torna a última vítima de um anjo diabólico que o seduz e manipula literalmente até à morte.