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Perante as mais recentes perdas no mundo das artes até parece que 2016 ainda não acabou – o grande Jaki Liebezeit dos Can ainda há poucos dias nos deixou. Se a ceifeirinha a todos tocará, há que reflectir sobre a importância de aproveitar os dias que nos restam e de não perder as grandes oportunidades desta vida – enfim, de a aproveitar à séria. Em nova parceria com uma marca de cervejas, a Galeria Zé dos Bois – daquelas instituições portuguesas que não desilude, bem pelo contrário – resolveu trazer duas referências (uma vetusta e outra recente) da música lusófona ao Aquário, Bonga e B Fachada; a tinta verde do palco (melhor do que qualquer relvado nacional) já quase que saiu, mercê do extraordinário movimento da casa ao longo do ano.
Neste encontro entre juventude e veterania quem saiu a ganhar foi o público. Mistura dos habitués da casa, de curiosos e até da família de Bonga, este conjunto de cacimbados levou as bicuatas e esgotou a ZDB numa sexta à noite. Quatro décadas após a desastrosa descolonização e liberdade e promessas não cumpridas aos povos que justamente ansiavam pela liberdade, assistimos a um importantíssimo encontro entre a geração que viu o fim do Império e o nascimento dos novos Países, contendo em si uma série de complexos históricos e culturais altamente prejudiciais ao desenvolvimento (como o próprio Bonga lembrou), e a nova geração, teoricamente descomplexada e livre de criar sem grilhetas ou medos.
Nada mais indicado do que B Fachada, em noite ondulante nos seus teclados, abrir com “Afro-Xula”. Não sabemos se foi do vinho ou do entusiasmo e prestígio que a noite encerrava (ou ambos) para o nosso jovem cantautor, mas a sua actuação foi das melhores que já o vimos fazer. Não de grande acerto mas, com ou sem cabos por ajustar, tornou-se num portento de humor e pequeno desfile dos seus já clássicos “Camuflado”, “Quem Quer Fumar com o B Fachada” e uma “Joana Transmontana” de viola braguesa na mão, com uma palheta algo rija oferecida por um membro do público (“mas onde é que isto é mole?” – B Fachada e ela dixit) e em cima de um público já bem aquecido para o maioral Bonga. O futuro ali mesmo.
Parte da arrogância e ignorância de muitos europeus à esquerda e à direita em relação a África prende-se com a imposição de estruturas sociais por si criadas (maxime a escola e parlamentos) ao antigo colonizado; quer o colonialismo quer o marxismo, na sua sanha supostamente “civilizadora” e “libertadora”, quase que lograram destruir a importância dos mais velhos na sociedade africana – um ancião na aldeia, na tribo, era e é tudo: administrador público, juiz, médico, declamador e figura ímpar. José Adelino Barceló de Carvalho, o Bonga, o kota (ou, se fosse moçambicano, o cocuana), transforma o palco numa grande embala. Mais até do que música, ouvimos a vida e o humor de Bonga (nem sempre politicamente correcto, seja a falar das vizinhas ou dos aplausos para a sua bailarina) sem perder o fio à meada.
A noite era especial, num recinto especial e num público cuja composição era especial. Como tal, tivemos direito a uma retrospectiva equilibrada da carreira do mestre – se tivéssemos de sublinhar a um não lusófono a importância de Bonga na música angolana, diríamos que se trata de um misto de Robert Johnson e de Hank Williams do seu país e, no plano geral da música popular africana, um músico ao nível de Ebo Taylor, Fela Kuti, William Onyeabor, Fany Mpfumo ou Travadinha. É, pois, um privilégio tê-lo nesta mítica intimidade do aquário da ZDB.
Arrancou com “Kamacove” e “Marimbondo”, duas críticas àquilo em que a Angola independente se tornou: depois da guerra civil aparentemente sem fim, o fim da ilusão da democracia e o saque final à terra e ao povo. Numa toada mais ligeira mas não menos mordaz e certeira, prosseguiu para “Homem do Saco”, esse meio bicho-homem que nos vai comer a todos. Até aqui e do que lhe conhecemos, Bonga manteve-se fiel aos alinhamentos dos seus concertos; há alguns meses, no Coliseu do Porto, este escriba e um amigo limiano imploraram ao sábio para interpretar, daí a alguns minutos, algumas canções dos magníficos “Angola” 72 e 74 – sem qualquer sucesso, contudo.
Como a noite na ZDB era já histórica, eis que Bonga se sai com “Mona Ki Ngi Xica”, do histórico “Angola 72”. Momento de enorme alma, com a sua voz rouca inconfundível e dikanza em punho, marcando um ritmo que era melodia. Mais alma ganhou o momento quando, mais tarde, se descobriu ter sido dedicada a Joana Botelho, membro da equipa da ZDB que nos deixou em Agosto de 2015. Também Bonga se curva perante a saudade.
Mais do que semba, Bonga é alma lusófona, transcendendo fronteiras – diz trazer Chico Buarque, Amália e Cesária Évora no coração e bem o tem provado. Faz batuque com o dikanza após interromper o público falador e começar nova investida, carrega sobre as congas enganando os seus 75 anos de vida e faz piadas e manda calar os candengues mais linguarudos. E alerta, qual ASAE ou Leonel Nunes do quiabo, que o Pau de Cabinda que para aí anda não passa de um tubérculo sem qualidade. E dispensa saladas, que nem quando era atleta do Benfica as tolerava – só bifes e saudades de quiabos, de mandioca e de fuba.
Mantendo-se a coerência do alinhamento, mais um êxito, seguido de uma novidade: “Mulemba Xangola” e “Odji Maguado” de “Recados de Fora”, de 2016. E mais uma crítica: o deslumbramento dos angolanos pelo Brasil, desprezando os seus (como Bonga) e tudo oferecendo ao estrangeiro – igualmente actual em Portugal. Mais ainda: a exportação para o Brasil e Caraíbas de géneros africanos, que são depois transformados e devolvidos sem cerimónia a um público que desconhece o que é originalmente seu – ouviram, kizombeiros?
A coerência é tudo para Bonga: se começou por arranjar maka com o colonizador português, perante a liberdade traída e cassumbulada pelo novo regime rapidamente ajustou o tiro para o regime angolano – como ficar indiferente às matanças de 27 de Maio de 1977, às chacinas da DISA e aos massacres da Unita? O novo-riquismo latente na “nova” Angola dos últimos anos e agora caído em desgraça por falta de liquidez ou, melhor dizendo, de kumbú, não escapa à língua ácida do artista. Demos licença a Bonga para que nos topasse e ele fez-nos a vontade, que também queríamos lágrimas (de felicidade) ao canto do olho e “Mariquinha”, êxitos em acelerado, que arrancaram dos maiores coros da noite. Nova carta saída da manga de Bonga: chama o neto B Fachada ao palco e, porque o Santo António é quando a gente quer, dedicam-lhe umas cantorias a cappella.
Os cerca de noventa memoráveis minutos de suor, semba e manguitos aos que nos fazem mal chegaram ao fim com uma sobremesa de boa ginguba, com “Comeram a Fruta”. A banda multinacional de Bonga encerrou uma lição magistral, na melhor tradição oral africana.
Nestes tempos em que tudo foi transformado em “experiência” (ou experience), uma noite destas traduziu-se em tal, porque ainda há quem tenha memória e visão de conjunto. Um concerto destes, com mais ou menos êxitos, é uma revisitação do corolário do Portugal dos últimos séculos e em particular dos últimos quarenta anos – seja com instrumentos ou com a opinião de Bonga, o sábio da terra. Com “Mona Ngi Xica” atingiu-se o apogeu da noite, numa casa cheia para ver o kota dizer a sua vida debaixo do embondeiro, numa chana cujo chão tem vindo a ser construído pelo que de melhor temos – seja em português ou quimbundo. Instituições como a ZDB e artistas como Bonga é que constroem as Pátrias e não decretos opressivos, cobardia intelectual e tiros contra inocentes.
Como disse Bonga a dada altura, a gente tem é de falar.